O pai de Manuel Telo deixou-lhe em herança trabalho. E uma herdade de 100 hectares para o executar. Quem o conhece de sempre apostou que não estaria à altura do desafio e da responsabilidade. Em Campo Maior muitos acreditavam que “isto iria por água abaixo, porque até aos 45 anos não trabalhava e vivia à sombra dos meus pais”, assume sem reservas. Mas quando a exigência comparece e a vontade de responder se dá, perante uma situação que requere mais tacto, a atitude surge. Manuel Telo reagiu para lá do que se esperava dele e quando a herdade lhe caiu nas mãos, fez o que havia a fazer: arquivou o passado de filho pródigo, e agarrou-se ao legado. Agora, no lado oposto do espectro, é como se procurasse a redenção. Trabalha 7 dias por semana. Começa antes do sol nascente e arreia depois do sol posto, para sacar o sustento da terra. Em busca dos melhores resultados e de algum alívio, arranjou um sócio para a lavoura. O resto, é com ele: o cuidado do monte em geral, e o pastoreio em particular. Manuel Telo tem dois rebanhos: um de cabras e outro de ovelhas, que requerem atenções diferenciadas. E habilidade para tentar contrariar os efeitos que o carácter obstinado da natureza provoca no cuidado dos animais. A escassez de água, elemento vital que permite colocar algumas rédeas no espaço rural que lhe calhou em sorte na roleta geográfica, dificulta-lhe a tarefa, e junta-se a outras agravantes, como as sucessivas políticas agrícolas, que critica efusivamente, a carga burocrática, e o olhar de esguelha “sobre quem trabalha”. Exortado a mostrar-nos de perto os rebanhos e a actividade do pastoreio, Manuel Telo foi mais longe, e encarregou-se de demonstrar as razões que estão a levar a que esta profissão caminhe para a extinção. Conduzir rebanhos exige um trabalho permanente desenvolvido em condições adversas. E é “preciso estaleca” para aguentar. O nosso entrevistado já ameaça desistir. Enquanto resiste, vai inspirando balões de oxigénio. Todos os fins de semana, suspende o trabalho umas horas e cruza a fronteira para outra demanda: os bailes no karting de Olivença. Manuel Telo é natural de Campo Maior, “nascido e baptizado na freguesia de São João Baptista há 67 anos”. Tem um monte na raia, algures entre Ouguela e Albuquerque. Fala “à campomaiorense”, com umas pinceladas de castelhano. Vive na fronteira que separa a alegria do cansaço, um local cada vez mais árido e longínquo, que se desconstrói lentamente pelas inclemências da natureza: a humana e a atmosférica.

Para se chegar ao monte de Manuel Telo segue-se a estrada que liga Campo Maior a Ouguela. A referência para o encontrar é avistar uma casa com dois eucaliptos. Mas é fácil passar-lhe à roda, não o identificar, e continuar a conduzir mais alguns metros, que se convertem num par de quilómetros, até suspeitar de que estamos perdidos. A beleza da paisagem só por si causa distração. Se lhe acrescentarmos a existência de outras herdades com o mesmo número de eucaliptos junto das moradias, e a falta de sentido de orientação à tuaregue que nos integra, o melhor é parar e telefonar, dar as coordenadas de localização e solicitar resgate.

A tarde já ia avançada quando, finalmente, o agricultor nos conduziu pela estrada de terra batida que rasga a propriedade. Última quinta-feira de Julho, com o mercúrio do termómetro no topo da escala. O atraso revela-se vantajoso. O crepúsculo acarreta uma ligeira brisa que ameniza a tarefa, e faz assomar um bando de patos desengonçados que grasnam. Dois cães de porte pequeno, executam a função que lhes compete e ladram efusivamente, dando o alerta da presença de estranhos. Em cativeiro, para não causarem carnificina na criação que deambula, silenciam-se à ordem do dono que os manda calar. Chegados ao terreiro do monte, olhamos em redor e apercebemo-nos do charme caótico que caracteriza toda a propriedade. O trabalho é inesgotável. Manuel não tem mãos a medir. A irmã Catarina, co-proprietária, já não tem saúde para se ocupar a cem por cento da parte que por tradição é confiada às mulheres na ruralidade, a da organização doméstica. Ainda assim, apesar dos 69 anos e da fragilidade física, vai fazendo mais do que pode. Tem a seu cargo a limpeza da casa, e é ela que transforma em comida os animais que cria e os seus derivados. Encarrega-se de dirigir a matança do porco, de fazer os enchidos, e de cortar as goelas às galinhas e aos patos, que recheiam duas arcas congeladoras “que estão sempre a tope”. Também são as mãos laboriosas e treinadas de Catarina Telo que temperam e esculpem o queijo de cabra mais delicioso que alguma vez provámos.

Entre a vontade de trabalhar e a vontade de desistir

O rebanho de cabras, composto por mais de uma centena de cabeças, está recolhido no bardo, que fica numa lateral do monte, colocado estrategicamente debaixo de uma fiada de azinheiras. Manuel Telo congratula-se por ter ignorado as exigências das autoridades que o mandaram abater as árvores, sob o pretexto de que passariam por ali os canais da barragem do Abrilongo. “Mandaram-me umas cartas, com essas ordens. Os ratos já roeram as cartas e os canais ainda não vieram. Eu disse, não vou arrancar as azinheiras até que não comecem a construir, e até hoje, nada, nunca os fizeram”, conta no momento em que transpõe a porta do curral, para despejar comida nas manjedouras. “O Verão é muito complicado. Não vê como está o chão? Todo raspado. As árvores, além de protegerem os animais do sol e do calor, dão a bolota. É uma ajuda!” Mais à frente, também debaixo das azinheiras, estão espalhados vários bebedouros com água limpa e fresca. “Aqui é onde bebem. Só para elas, todos os dias, são três mil litros. Para as ovelhas são três mil litros também”.

A rotina de trabalho no monte resulta da herança que o pai lhe deixou. “A herdade é minha e da minha irmã”, sublinha. “Na origem era dos meus avós. Mais tarde veio parar às mãos do meu pai, GNR de profissão. Quando se reformou veio para aqui. Tinha um carácter muito próprio. Era ‘quero, posso e mando’. Não nos transmitia muita informação. Na realidade nem tínhamos acesso às contas bancárias. Era um sigilo, uma carta fechada. Quando faleceu caiu-me tudo nas mãos. Até aos 45 anos eu não trabalhava. Depois vim para cá e habituei–me. Agora, adoro isto”.

Com um sem fim de tarefas para executar, numa herdade com uma dimensão de 100 hectares, e com a idade a começar a pesar-lhe, Manuel Telo arranjou um sócio que se encarrega da lavoura. A decisão não podia ter sido mais acertada. “Está a correr bem. Este ano tivemos uma boa safra, Graças a Deus. Semeámos as duas folhas, numa feno e na outra triticale. Nem sempre temos boa comida para o gado, e este ano há. Também é verdade que gastámos muito dinheiro em semente selecionada e adubo líquido, mas o resultado foi bom”.

Quando a colheita não é favorável, as preocupações aumentam, e assoma a vontade de desistir. “O ano passado veio a senhora engenheira controlar e eu disse-lhe: isto está de tal ordem que eu vou já entregar a pasta. As dificuldades são muitas, e o Estado não ajuda quem trabalha, ajuda quem não faz nada. Este ano, com a seca que tem havido, se não tivesse comida para dar aos animais o que fazia? Deixava que morressem à fome? Mesmo assim, há sacos espalhados por todo o lado, penso que compro para os animais”. As bocas a comer são vários: cabras, ovelhas, porcos, patos, galinhas e gansos. Ao cuidado aos bichos juntam-se muitas outras despesas. Entre o deve e o haver, feitas as contas, a margem é escassa.

A desproporção entre o trabalho que nunca mais acaba e o lucro

Manuel Telo contempla a agricultura e o trabalho através de uma lente sem grandes possibilidades de escolha. Os gastos são mais que muitos e há até quem tente desafiar a sorte e se esquive a alguns deles. “Tivemos que fazer o aceiro, por causa dos fogos. Nós estamos encostados a Espanha e lá não perdoam. Ainda assim, muitas pessoas não fazem, porque não querem gastar dinheiro no gasóleo, que está caro. Olhe, o meu vizinho não fez nenhum. Ele tem mais de 700 hectares e não semeia nada”. Quando perguntamos pelo lucro que tira da agricultura, interpretamos que o que o mantém a trabalhar é uma certa coragem cívica que lhe vem de um coração que aprendeu a amar a terra e o trabalho, cada vez mais fraco para bombear o sangue para cima. O rendimento que tira anualmente é mínimo e desproporcional ao trabalho que executa. O que lhe garante alguma despreocupação é a pensão de sobrevivência da mulher, que era bancária, e a própria reforma. “Todos os meses vem aquele dinheirinho, que me deixa tranquilo. Se não fosse isso teria dificuldades”. Há sempre gastos inesperados. “Máquinas que avariam, animais que adoecem e necessitam de ser tratados. Estou cansado. Tenho que tratar de tudo. A minha irmã tem a saúde a degradar-se. Eu sempre quis ter uma mulher que me acompanhasse. Nem que fosse para ir fazer compras ao supermercado, pôr gasóleo no carro, tratar dos papéis, da escrita, porque é preciso muita papelada”. Enquanto fala, vai-se aproximando do redil das ovelhas, no total 220 cabeças. Acena na direcção dos animais e explica: “está a ver? Estão a comer à mão. No Verão é sempre assim, faltam pastagens”. O momento é oportuno para questionar quanto gasta com as ovelhas e as cabras. “É melhor nem saber, mas é muito! Quando fui fazer o IRS levei uma pasta grande com facturas. O contabilista disse: ‘não é preciso trazer isso, já está aqui tudo’. Até me zanguei. Se vendo uns borregos, lá tem que ir a factura. Então e as despesas que tenho? Caramba, farto-me de trabalhar e não se ganha nada”.

O dia de Manuel Telo é longo e não tem limites de horário. Começa cedo e termina muito depois do sol se pôr. “Levanto-me às seis e meia da manhã. Solto as ovelhas para irem comer no restolho. Mais à frente têm a água. A porta está aberta e vão sozinhas. Depois trato dos porcos, e de todos os outros animais. Aqui há de tudo, cães que aparecem e vão ficando, gatos, galinhas, patos… Como é Verão e o calor aperta, à tarde durmo a sesta. Quando me levanto, repito as tarefas. Levo as cabras para debaixo das azinheiras. Os dias têm ido muito quentes e não quero que apanhem calor, porque é mau. As ovelhas estão sempre em cercas. Olhe, já comeram o feno. No chão ainda há restos. Deitei-lhes eram cinco e tal e já comeram tudo”. Vai explicando que “as ovelhas são menos esquisitas que as cabras”, e que “os borregos vendem-se melhor que os chibos. Praticamente ninguém os quer. Vendem-se a 20 euros. Estão a comer farinha, cada saco custa-me 14 euros, veja como é impossível tirar lucro”. Manuel Telo explica que cria estes animais pelo duplo gosto: o de os ter e o de os comer. E reforça que a principal vantagem do monte é ter comida de qualidade em abundância. “Fazemos a matança do porco. Quando começa a haver menos comida, a minha irmã vai matando umas galinhas e uns patos. Isso é muito bom, mas há muitas pessoas que não dão valor. Há até quem olhe de maneira diferente para nós, que somos do campo”. Reforça que sente esse olhar enviesado e lamenta que assim seja. “Não dão o devido valor a quem trabalha. Tenho muitos amigos agricultores que não fazem nada. Andam de jipe, vão para as praias. Eu não ponho os pés numa praia há anos! Não posso deixar isto. E o trabalho absorve-me o tempo todo”. Acena para uma mancha mais escura que se destaca horizonte, onde desponta a noite. “Está a ver aquele verde ali em cima? É a minha horta. Se vocês não estivessem cá, eu agora estava ali. Tenho rega gota-a-gota, que está ligada ao furo. A água é muito calcária, entope, e eu tenho que andar a ver os gotejadores. Tenho que andar sempre em cima de tudo. Dá-me umas dores nas costas, que nem imagina”. A vantagem, mais uma vez, é ter comida de qualidade. “Tenho lá tomate, pimentos, beringelas, melão, melancia. Tenho lá isso tudo”.

Pular a cerca para o lado de Espanha, em busca de alguma diversão

A cerca que separa a propriedade de Manuel Telo e a do vizinho não divide só as herdades, estabelece também os limites de dois países. Do lado de lá da vedação é Espanha. E é para lá que o agricultor corre cada fim de semana. Vai ao encontro da namorada e de um pé de dança. “No karting, em Olivença. Gosto muito de rumbas, passo doble… da música espanhola. Todos os sábados vamos, eu e a minha companheira. A vida não pode ser só trabalho, também temos que nos divertir. Mas quando chegam as quatro da madrugada, toca o sino e eu venho embora. Há aqui muita coisa, como estão a ver, e não convém descurar. A minha irmã não se levanta, mas eu, se há algum barulho na estrada, tenho que ir ver o que se passa”. Ao longo dos mais de 20 anos que vive na propriedade, nunca sofreu um assalto, sorte de que não beneficiam outros proprietários, que já sentiram o rasto dos ladrões, e isso dispara os alertas do agricultor, que redobra cuidados. “Como vocês entraram aqui, qualquer pessoa entra. A porta esta fechada, mas abre- -se. Não custa nada”.

Virados para essa porta que se abriu facilmente para entrarmos, já no escuro da noite, e depois de provado o delicioso queijo de cabra, o paio e o chouriço feitos por Catarina depois de nos convidar a voltar, Manuel Telo reitera a paixão que o liga ao trabalho e à terra herdada. Adoro, adoro isto! Embora já não tenha a força que tinha, trabalho com paixão. Eu era um avião. Montava-me num trator e andava a enfardar até à meia noite ou à uma da manhã. A vida do campo é dura, é preciso ter estaleca, e eu ainda vou tendo”.

Manuel Telo não tipifica a tradicional figura do apascentador de rebanhos encostado ao cajado acompanhado pelo cão, de vigia a um grupo de cabras ou ovelhas. Essa imagem vai sendo um retrato do passado, porque são cada vez menos as pessoas que se dedicam ao pastoreio, uma actividade exigente que implica trabalho e dedicação permanentes, desenvolvidos em condições adversas, e hoje em dia já poucos se dispõem a esses sacrifícios. Se andarmos para trás no tempo, e recuarmos ao fim do século XVIII, apercebemo-nos de que o pastoreio e a criação de gado foi uma actividade agrícola muito importante no Alentejo. Tendo em conta a grande extensão dos baldios e a importância dos restolhos que ficavam depois da ceifa nas terras cultivadas com cereais, e às folhas que se espalhavam pelos pousios, devido ao sistema de rotação de culturas, o pastoreio revestia-se de grande importância económica. O lucro proveniente dos cereais era (e é) oscilante, porque nem todos os anos as colheitas eram boas. Isso não acontecia com a criação de gado, que permitia assegurar um rendimento mais regular, porque mesmo em anos agrícolas mais fracos, os animais podiam alimentar-se nos campos. Os rebanhos eram inúmeros e fonte de emprego. Os pastores dormiam em choças junto ao rebanho, frequentemente auxiliados pelos “ajudas”, os pastores mais novos que os auxiliavam nas tarefas.

Aos dias de hoje as condições de trabalho e os resultados são diferentes. Como tudo, a agricultura não é estanque, vai evoluindo, ou regredindo. Depende do ponto de vista.

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