Em junho de 1808 durante a primeira Invasão Francesa a Portugal, sob comando do general bonapartista Junot, e após saber de editais que lançavam novos impostos, a população de Olhão fervilhava, tal como acontecia com os espanhóis de Sevilha (cf. Carla Costa Vieira, Olhão Junho de 1808: o levantamento contra as tropas francesas através da imprensa e literatura da época, edição do Município de Olhão, 2009, pág. 22) que saíram em defesa do rei Fernando VII – obrigado a abdicar pelo imperador Napoleão – e da família real espanhola. A resistência popular local deve muito (nota-se em vários testemunhos) à combatividade do padre António Malveira e ao ponto de encontro que foi a Igreja de Nossa Senhora do Rosário em Olhão, onde sempre foram defendidas as pratas da igreja mesmo em tempos de tentativas francesas de apropriação. Os pescadores de Olhão sublevam-se e irão embarcar guiados pela sua grande experiência e conhecimentos marítimos numa pequena embarcação com cerca de 15 metros de comprimento navegando rumo ao Rio de Janeiro, para onde tinha embarcado a Corte portuguesa com vista a resistir a Napoleão. E à sua tentativa de aniquilar os chefes de Estado da Europa. Dirigiam-se nomeadamente a D. João VI, que na verdade era ainda príncipe regente(foi regente em nome de sua mãe, D. Maria I, entre 1792 e 1816).

A reacção popular no Algarve é precoce e permitirá decisivamente expulsar os franceses do território da região, tendo por base uma organização local bem-sucedida, o que, como sabemos, por parte das autoridades centrais e do alto clero (bispos)de então só aconteceu mais tardiamente, bem como pelo resto do país (cf. Vasco Pulido Valente, Ir Prò Maneta, 2007). Este levantamento regional em grande medida é devido aos corajosos pescadores de Olhão, que ousaram desobedecer às ordens vindas de França que pretendiam controlar toda a Península.

Deixa-se aqui alguns detalhes da organização: no dia 12 de junho, véspera de Santo António, festejou-se o santo e o escrivão do Compromisso Marítimo de Olhão, João da Rosa, ao preparar o altar de Nossa Senhora da Conceição na Igreja Matriz, como lhes estava destinado, destapa o brasão com as Armas de Portugal (o Escudo que ainda hoje se mantém como símbolo heráldico na Bandeira de Portugal, acrescentado da Coroa Real, então em uso e símbolo do poder Real, monárquico) que encimava o altar, numa clara desobediência aos generais franceses e à política de anexação de Napoleão Bonaparte que visava apagar os símbolos de Portugal enquanto país soberano. Logo nesse dia a população, ao rever os símbolos nacionais e neles se sentindo representada ou lembrada da sua identidade, dá vivas à família real (trata-se da IV dinastia, da Sereníssima Casa de Bragança que foi chamada a reinar em 1640 a Vila Viçosa, onde então vivia), os moradores estavam em júbilo e cantando a Santo António. Os ânimos locais não mais vergariam. Os pescadores, que foram aguerridos em terra e no mar, foram comandados pelo sargento José Gonçalves. No dia do Corpo de Deus o encontro renovar-se-á e estando presente José Lopes de Sousa, coronel e antigo Governador de Vila Real de Santo António que se havia demitido para não servir os franceses, que, ao ler o edital francês, pergunta ao povo se já não havia portugueses e homens do mar como os antigos. Ao que a população responde com ânimo que os há! Elegendo o antigo Governador de Vila Real como seu chefe, começarão a aprisionar militares franceses na região usando os sinos das igrejas e demais sinais tradicionais para as organizações que desde então levaram a cabo para expulsar os franceses das suas localidades. Juntar-se-á também o capitão Sebastião Martins Mestre de Tavira que, conseguindo negociar em Ayamonte material e munições, traz grande benefício aos habitantes de Olhão. Tendo Tavira e Faro presença francesa, Olhão e nomeadamente a vitória na ponte de Quelfes tornou-se decisiva na região, quer para preocupar o invasor, quer para animar a resistência lusa. De tal forma foram bem-sucedidos que, apesar de tomados por simples pescadores, espalharam a resistência à população de Faro com tal espírito e firmeza – e fazendo crer que tinham apoio inglês a caminho – que alarmam a presença francesa. Os franceses em fins de junho retiram-se do Algarve, de Lagos, Faro, Loulé, etc. É criada a Junta Suprema do Algarve em nome do príncipe D. João, chefiada pelo Conde de Castro Marim e integrada pelo capitão olhanense Miguel do Ó -é este capitão que vai oferecer um caíque para levar a mensagem ao príncipe. Junta Suprema esta que reuniu sendo presidida pelo conde, e futuro Marquês de Olhão, na Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo, em Faro.

É neste contexto, logo após a libertação, que os pescadores de Olhão se disponibilizam para avisar o D. João VI da boa nova, embarcando no caíque Bom Sucesso (uma pequeníssima embarcação de pesca), navegando pelo Atlântico rumo ao Rio de Janeiro, no Brasil, onde a Corte estava estabelecida. A 7 de julho embarcam no Bom sucessoos seguintes marítimos: o piloto Manuel de Oliveira Nobre enquanto capitão do navio, o mestre Manuel Martins Garrocho e os tripulantes António Pereira Gemido, António da Cruz Charrão, António dos Santos Palma, Domingos do Ó Borrego, Domingos de Sousa, Francisco Lourenço, João Domingues Lopes, João do Munho, Joaquim do Ó, Joaquim Ribeiro, José Pires, José da Cruz, José da Cruz Charrão, Manuel de Oliveira e Pedro Ninil.

A Junta governativa encarrega o mestre Garrocho de entregar documentos ao regente, da própria Junta e do Compromisso de Olhão. A 14 de julho o caíque chega ao Funchal onde faz a aguada e embarca o novo praticante marítimo Francisco Domingos Machado, para substituir o piloto Manuel Nobre caso acontecesse algum imprevisto de saúde, sem cartas marítimas, porém todos com grande conhecimento e experiência das correntes. No dia memorável de 22 de setembro de 1808 atingem o Rio de Janeiro, baía de Guanabara. O caíque português Bom Sucesso com a bandeira portuguesa hasteada e dignamente apresentada como era apanágio da tradição de marinharia portuguesa, com grande espanto de quantos os viam chegar à costa brasileira. Foram recebidos pessoalmente por D. João VI a quem entregaram a documentação enviada pelos representantes do reino do Algarve.

O soberano – dotado de visão estratégica e simpatia humana -, impressionado com o feito dos leais moradores de Olhão que na altura teria cerca de 5.000 moradores, concede as seguintes honras e privilégios: concede medalhas honoríficas aos moradores de Olhão, as chamadas Medalha da Restauração de Olhão, que eles tinham o direito a usar. Atribui à tripulação do caíque a recompensa de 1 conto e 200 mil reis, ainda lhes compra o caíque e oferece nova embarcação para a viagem de regresso. Concede a alguns dos marítimos envolvidos, provavelmente aos mais graduados,a distinta mercê de cavaleiros da Ordem de Cristo. E os elementos da tripulação foram promovidos a oficiais honorários da Armada Real(cf. Paulo Jorge Estrela, No Bicentenário da Guerra Peninsular: ordens e condecorações portuguesas 1793-1824, pág. 144). O lugar de Olhão é elevado por Alvará de D. João de 15 de Novembro de 1808 à dignidade de Vila de Olhão da Restauração, pois “foram o primeiro sinal para se restaurar a Monarquia”, atribuindo-lhe todas as honras e liberdades de que gozavam as mais notáveis vilas do reino. E ainda o governador do Algarve é acrescentado com o título de Marquês de Olhão, como honra à nova vila destes heróis do mar.

Curiosamente , célebre na época, José Agostinho de Macedo (natural de Beja) publica um poema de homenagem aos heróis de Olhão, com uma segunda edição de 1825 na qual escreve: Revendo agora este esquecido Poema o descubro tao farto de cousas substanciais, tao ataviado de enfeites Poéticos, que me obriga a consentir em huma segunda impressão, não para gloria minha, mas para beneficio alheio; desejando ao mesmo tempo augmentar na Posteridade as próvas de que amei a Pátria sem interesse, (pois que podia eu esperar de hum triste Mestre de hum pobre Caique do Algarve ?) de que nao lisongeei a soberba dos Grandes, e de que nao tive outro Idolo mais que a Virtude, fosse qual fosse a condiçao em quem a encontrasse. (cf. O Novo Argonauta; Poema por Jose Agostinho de Macedo, Lisboa, Typografia de Bulhões, 1825, pág. 7).

É por tudo isto que não se deve esquecer os feitos da população de Olhão cuja História Local influenciou o destino de Portugal, com grande valor humano e nacional, na defesa da independência do país. E foi desta forma que Olhão ganhou autonomia administrativa municipal face à histórica cidade de Faro do reino dos Algarves.

Aqui fica a homenagem, por um descendente de navegantes, mareantes e marinheiros, daqueles que desde Quinhentos levaram por esses mares o Pavilhão nacional. Estou em crer que os exemplos de abnegação são sempre dignos de recordação.

(Bibliografia recomendada: Sebastião Drago de Brito Cabreira, Relação histórica da revolução do Algarve contra os franceses que dolozamente invadirao Portugal no ano de 1807, Lisboa, Typografia Lacerdina, 1809.Alberto Iria, A Invasão de Junot no Algarve, Amadora, 2004. António Rosa Mendes, Um documento precioso in O Manuscrito de João da Rosa, Câmara Municipal de Olhão, 2008.Catálogo da exposiçãoD. João VI e o seu tempo, Palácio da Pena, 1999. Paulo Jorge Estrela, No Bicentenário da Guerra Peninsular: ordens e condecorações portuguesas 1793-1824, Lisboa, Tribuna da História, 2008.)

Votos de bom ano de 2023 aos caros leitores e leitoras.

Tiago Matias, diplomado em Estudos Europeus pela Faculdade de Letras de Lisboa

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