Considerava-o um amigo, ainda que tivéssemos perdido o contacto desde que saiu de Elvas. Mas durante todos os anos em que aqui viveu mantivemos uma relação próxima. Lembro-me de ter ido com mais dois amigos cumprimentá-lo à casa paroquial no primeiro dia em que chegou, ainda com as trouxas por desfazer e a gaiola dos seus pássaros de estimação à porta. Apresentámos-lhe projectos, grupos de jovens, noites de oração e tantas outras iniciativas que acolheu de bom grado e nos ajudou a materializar. Recebia com indulgência os nossos desvaneios musicais na Missa vespertina de sábado em Santa Luzia, ainda que por vezes o víssemos revirar os olhos quando o coro estava a nadar fora de pé. Éramos imaturos. Gostava muito de música e, ainda que eu não fosse fã das suas famosas acções de graças cantadas de guitarra no altar, passámos vários bons momentos a desgarrar fados e modinhas nos convívios da paróquia. Mas onde criámos maior intimidade foi naqueles serões ocasionais em que íamos beber uma cerveja e tirar dúvidas de fé. Ele reunia quatro ou cinco rapazes e raparigas e por largas horas explicava-nos as verdades do evangelho, dos sacramentos e dos dogmas da Igreja. Em particular, lembro-me de uma tertúlia sobre a tradição apostólica em que nos disse ser surpreendente que, por mais terríveis que fossem as condutas morais de alguns papas ao longo da história, nenhum pontífice jamais errou em matéria de fé.
O período do ano de mais intenso convívio era sem dúvida a Semana Santa, em que nos desdobrávamos em tarefas várias, desde pintar faixas, preparar andores, participar em procissões, assistir às Laudes, cantar nas cerimónias litúrgicas e, como não, também relaxar e rir nas situações de algum ridículo. Tinha um apetite voraz e uma noite, terminada a procissão do mandato (Quinta-Feira Santa), fomos cear à casa paroquial. Como só faltava uma hora para a meia-noite, e para aguentar o jejum integral do dia da Paixão do Senhor, despejou o conteúdo inteiro do seu frigorífico sobre a mesa e, prato por prato, devorou de maneira pantagruélica toda a refeição. Evidentemente que o corpo retaliou – sentiu-se tão mal depois que pensou que ia morrer. Na manhã seguinte contou-nos que essa noite tinha rezado de joelhos o Credo três vezes, tal era a iminência com que julgava a morte a chegar.
E agora, tê-lo-á rezado também? Quais as perturbações, a angústia, o temor ou outras circunstâncias para este desespero? Padre José António, o que lhe aconteceu? Esta última semana foi tempo de grande turbulência interior. Quantas dúvidas não se puseram, quantas vezes não revisitei os momentos que passámos juntos na esperança de encontrar indícios que antecipassem este desfecho… Mas foi tudo em vão, nada me levaria para uma hipótese tão rebuscada e trágica como a que se veio a concretizar.
Num comentário à Imitação de Cristo, São Francisco de Sales conta que o devoto Frei Rufino, naquela visão que teve da glória à qual chegaria o grande São Francisco de Assis por sua humildade, fez-lhe esta pergunta: — “Meu caro pai, eu vos suplico dizer-me na verdade que opinião tendes de vós mesmo”. E o santo disse-lhe: — “Na verdade eu considero-me o maior pecador do mundo e aquele que menos serve a Nosso Senhor”. Mas, replicou Frei Rufino, “como podeis dizer isto de verdade e em consciência, uma vez que muitos outros, como se pode ver claramente, cometem muitos pecados graves, dos quais, graças a Deus, estais isento?”. Ao que São Francisco respondeu: — “Se Deus tivesse favorecido esses outros, dos quais falas, com tanta misericórdia como me favoreceu, estou certo de que, por maus que sejam agora, eles teriam sido muito mais reconhecidos pelos dons de Deus do que eu, e o serviriam muito melhor do que eu. E se o meu Deus me abandonasse, eu cometeria mais maldades do que nenhum outro […]”.
Há doze anos estava com dúvidas em relação à minha vocação e o Padre José António, recém-chegado a Elvas, falou comigo e emprestou-me uma biografia do Cura d’Ars, de Francis Trochu. Por circunstâncias várias, o tempo foi passando sem que o livro fosse lido ou devolvido ao seu dono. Só há pouco tempo peguei finalmente nele – e que livro! Queria acabar a leitura rapidamente para o restituir ao Padre José António, juntamente com um enorme pedido de desculpa pelo atraso e um imenso agradecimento por me ter dado a conhecer a vida de um tão grande modelo de santidade. Já vou tarde. Não só para o entregar pessoalmente, mas também para que ele o lesse de novo. Tenho a certeza que lhe teria feito bem, como ainda pode fazer bem a tantos outros sacerdotes que atravessam momentos de desolação. Que os caminhos insondáveis de Deus, pela intercessão destes grandes santos e também de São Pedro Damião – na memória de quem o Padre José António morreu e que tanto sabia sobre a natureza humana –, lhe possam ainda oferecer a salvação eterna. Descanse em paz.