1 ano a escrever, 13 textos publicados – cheguei a esta conclusão enquanto organizava uns ficheiros. A realidade é que muito aconteceu no país e no mundo em somente 1 ano e, como tal, em homenagem ao 93.º aniversário de publicação de Admirável Mundo Novo, da autoria de Aldous Huxley, Admirável País Velho dividir-se-á em 3 partes, sendo, cada uma, uma reflexão acerca de alguns dos últimos
acontecimentos, com maior foco mediático em Portugal.
O aumento da imigração no nosso país tem sido um dos temas mais debatidos na Assembleia da República, nos últimos anos, e tem divido esquerda e direita sobre as medidas a adotar. Além disto, posturas e acusações racistas são constantemente trazidas a plenário, sendo que alguns partidos acabam por fomentar estas mesmas perceções, posteriormente, na sociedade. A verdade é que são vários acontecimentos do ano anterior nos quais me poderia focar, porém, creio que a morte de Odair Moniz, a 21 de outubro de 2024, e a operação policial no Martim Moniz, que decorreu a 19 de dezembro de 2024, foram as que mais indignação geraram na comunicação social, no foro político e na sociedade portuguesa.
O caso de Moniz continua a dar que falar, inclusive, esta semana, a investigação teve novos desenvolvimentos, tendo sido o polícia, que disparou contra o homem de 43 anos, acusado de homicídio. Na realidade, este texto não servirá para analisar o caso em questão, mas sim para nos debruçarmos sobre a abordagem adotada e, de uma certa forma, sobre o contexto geográfico. Falamos de um indivíduo cabo-verdiano, que residia na Bairro do Zambujal e que foi assassinado na Cova da Moura; a partir deste quadro, é possível localizar, através da teoria da intersecionalidade, a posição de Odair Moniz na hierarquia social: um homem negro, que vivia num bairro social, e mais não seria necessário escrever para identificar a situação desfavorável e opressiva em que se encontrava. E, na realidade, cada vez mais encontramos no foro social disseminado o estigma contra pessoas negras e/ou os habitantes destes bairros e aqui poderá não ter sido exceção. A verdade é que ainda está a decorrer o inquérito sobre o sucedido na madrugada de 21 de outubro e todos os factos desse acontecimento estão por apurar, no entanto, sabemos que um ser humano morreu pelas mãos de um polícia. Por muito que argumentem que ao ser abordado, Moniz apresentou resistência e um comportamento violento e agressivo, onde se justifica a morte desta pessoa? Deixem-me dizer, não se justifica. Além do mais, não são as forças de segurança treinadas e não dominam diferentes formas de atuação para que o uso de disparo seja utilizado somente em último recurso e em caso de perigo iminente? Em caso de ser necessário disparar, não são conhecidas as zonas do corpo humano onde o risco de morte é reduzido? Por fim, dois agentes policiais, devidamente treinados, não foram capazes de lidar com um só homem sem ser necessário recorrer ao uso de arma? Quantos mais George Floyds terão de morrer às mãos da força policial excessiva e desmedida?
Cerca de 2 meses depois, os noticiários e as redes sociais enchem-se com um caótico cenário na Rua do Benformoso, no Martim Moniz. Uma escolta policial instalou-se nesta zona e imagens de dezenas de imigrantes encostados à parede viralizaram. Uma vez mais, vamos às questões que importam. Não deixa de ser verdade que há um grande sentimento de insegurança e uma significativa taxa de criminalidade na zona anteriormente referenciada. E é evidente que existindo suspeitas da prática de atividade ilícita, as Forças de Segurança Pública são obrigadas a intervir. A questão a colocar, uma vez mais, é qual o modus operandi a adotar? Como realizar uma determinada operação sem que haja qualquer tipo de represálias? Neste caso, especificamente, não houve represálias em termos de um “contra-ataque” por parte dos ditos suspeitos, mas sim a nível da dignidade humana. Falamos de uma operação policial que encostou à parede dezenas de indivíduos, sendo a maioria destes, imigrantes oriundos do Bangladesh e da Índia; acabaram detidos dois portugueses, numa operação que durou entre uma a duas horas.
Quero, desde já, fazer a ressalva de que este texto não é um ataque, nem uma crítica às qualquer Força de Segurança Pública, uma vez que aí teria de entrar no domínio “abuso de poder vs. falta de meios para atuar” e focar-me na estrutura hierárquica envolvente. Pretendo, sim, ir ao encontro do estigma que tais atos fomentam, relativamente a estas pessoas e a estes bairros. De acordo com os relatórios, é notória a frequente ocorrência de delitos (e até crimes de extrema gravidade) em zonas como a Amadora ou o Martim Moniz, mas são, concomitantemente, localidades com maior foco tanto mediático, como político e policial também. Crimes podem acontecer em qualquer lugar, seja naqueles com maior ou menor incidência, sejam mais ou menos graves, mais óbvios ou mais discretos, ou onde mais ou menos se espera. Por alguma razão temos um Sistema Judiciário, que julga os cidadãos pela prática dos seus crimes, aplicado sanções conforme previstas no Código Penal.
Os julgamentos não são feitos em praça pública e muito menos são feitos por base em qualquer outro aspeto, se não somente o crime per se. Por muito que os tribunais portugueses não funcionem idealmente (e aqui poderíamos incluir, simultaneamente, a postura policial) a solução não está em viabilizar discursos de ódio e promessas de transformações radicais; é, sim, urgente aperfeiçoar a fiscalização que determinados órgãos estatais deveriam realizar, assim como garantir que a Justiça e as Forças de Segurança dispõem de todas as ferramentas necessárias, de forma a que desempenham as suas funções corretamente e, acima de tudo, de maneira a não interferir com a dignidade e o bem-estar tanto de cidadãos como de profissionais.
A criminalidade, seja em Portugal ou em qualquer parte do planeta, não tem cor, nem raça, nem etnia; os crimes são sim praticados por seres humanos, cidadãos de um determinado país, que têm de ser julgados e condenados pelo sistema jurídico desse mesmo país. Violência somente vai gerar mais violência, aqueles que nos tentam dividir são os mesmos que nos querem conquistar; demonizar e estigmatizar o outro, tendo por base preconceitos e generalizações, é altamente falacioso e chega muitas vezes a ser
desumano. O problema não está na imigração, está sim na precária fiscalização que é feita e nas dificuldades que, muitas vezes, são interpostas no processo de obtenção de vistos de residência. Os fluxos migratórios são necessários e benéficos para qualquer país, como se tem vindo a comprovar ao longo dos últimos anos através de dados publicados pela Segurança Social. Em fevereiro celebra-se, precisamente, o Black History Month, uma celebração inicialmente estadunidense, que visava celebrar e reconhecer as conquistas e a importância da comunidade afro-americana na História dos Estados Unidos da América, mas que rapidamente se disseminou pelo mundo, sendo vários os países que em fevereiro celebram a História das pessoas negras.
Termino este texto com um apelo. Apelo a que sejam tolerantes, que sejam pacíficos e que, acima de tudo, respeitem o próximo, quer na sua diferença, quer na sua semelhança. Aldous Huxley apresentou-nos uma sociedade distópica, onde as invenções científicas tomavam conta do pensamento humano, em contrapartida, estamos a assistir a uma regressão, tanto temporal como humana, no entanto, onde reina a alienação e o desrespeito pelo “diferente”.