Terminemos, por fim, esta “odisseia” que tem sido feita em torno do estado atual da nossa nação. Caminhada essa que tem passado por verificar se há direitos humanos que estão a ser colocados em causa, nos últimos tempos. Observámos os imigrantes e toda a narrativa que se tem sido construído ao seu redor; atravessámos o debate intemporal sobre a interrupção voluntária da gravidez e a forma como tem sido encarada no que à sua legislação diz respeito; por fim, debruçar-nos-emos também sobre um direito que é fundamental e universal a cada cidadão: a saúde. A existência de um Serviço Nacional de Saúde (SNS) sempre foi um motivo de orgulho para o Estado Português, já que permitia garantir um acesso digno e gratuito aos mais diversos serviços de saúde, garantindo assim o bem-estar da população. Contudo, a sua reforma e manutenção têm dividido o espetro político português que, face às suas inúmeras fragilidades, tem apresentado distintas soluções para os problemas que o assistem.

O SNS português já conta com 45 anos de vida. Na introdução do documento O Ato Fundador do SNS, disponível na página do Parlamento, pode-se ler “A Lei n.º 56/79, de 15 de setembro, criou o Serviço Nacional de Saúde, no âmbito do Ministério dos Assuntos Sociais, enquanto instrumento do Estado para assegurar o direito à proteção da saúde, no termos da Constituição. O acesso foi garantido a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social. O SNS passou a envolver todos os cuidados integrados de saúde e definiu-se que o acesso era gratuito.”

A verdade é que, ao longo dos últimos anos, se têm verificado uma data de fragilidades nos serviços, seja desde a lenta resposta das urgências e de algumas especialidades, como pela significativa falta de profissionais de saúde, à precária e difícil comunicação entre sindicatos, ministérios e gabinetes, de forma a tornar as carreiras mais aliciantes e o acesso ainda mais fácil e (desculpem a redundância) acessível. E ao tomar a decisão de escrever sobre este tema, senti alguma dificuldade em selecionar os momentos específicos que deveria abordar e, simultaneamente, como agrupá-los de forma que o texto não ficasse demasiado exaustivo.

Dessa forma, debrucemo-nos, numa primeira instância, sobre o estado das urgências, que tem sido um dos temas mais discutidos. E é um tanto difícil, à partida, tomar uma certa posição sobre a forma como estas devem gerir os casos que surgem, já que um determinado sintoma pode ser sentido de distintas formas e é também complexo avaliar a sua possível gravidade. Isto conduz a que, algumas vezes, as urgências de um determinado hospital sejam entupidas com casos um tanto caricatos, já que o seu quadro clínico, posteriormente, virá a demonstrar que não há perigo existente. Isto faz com que casos mais críticos possam ter de aguardar mais tempo que aquele já considerado “normal”. Contudo, o normal tende a revelar-se bastante longo, quando se chega a ter um tempo médio de espera de mais de 2 horas (ou de mais de 10 horas, como já sucedeu), sendo tal inaceitável e também inviável, tendo em conta que determinados quadros se podem complicar. A solução encontrada pelas entidades competentes resume-se a uma chamada para a Linha SNS24, na qual será realizado uma espécie de prognóstico e só aí o utente será encaminhado para as urgências, se se revelar necessário (não só poderá, como também é a única forma de ser atendido na unidade hospitalar). O que acontece, por exemplo, às pessoas idosas que poderão não saber utilizar um telemóvel ou cuja capacidade auditiva já possa ser um tanto reduzida? Ou se as linhas telefónicas falham? Consigo compreender que o intuito seja “desentupir” o serviço de urgências, contudo, creio que deveria haver diretrizes mais específicas, já que este processo poderá atrasar determinados procedimentos a adotar.

Além disto, podemos também olhar para o estado em que se encontra o INEM e para as suas condições. Se recuarmos sensivelmente até à primeira semana de novembro, é possível recordar a greve realizada por este mesmo organismo, no decorrer das negociações que o sindicato representante tentou fazer com o Ministério da Saúde. Inclusive, vários órgãos de comunicação social noticiaram, na altura, os constrangimentos que tal greve estava a causar. Além disto, o relatório preliminar recém-publicado pela Inspeção-Geral das Atividades em Saúde revela que o Ministério da Saúde ignorou os pré-avisos das greves dos técnicos de emergência, realizadas nos dias 31 de outubro e 4 de novembro de 2024 (tendo o serviço apresentado constrangimentos entre estas datas). O departamento governamental não terá avisado o INEM desta ação, pelo que este não conseguiu garantir serviços mínimos, já que este só teve conhecimento da greve no próprio dia (31 de outubro de 2024), assim consta no relatório, e, também, deixando centenas (ou milhares) de chamadas por atender, no dia 4 de novembro de 2024, o que poderá ter contribuído para a morte de várias pessoas.

Uma outra especialidade que tem estado na mira da imprensa e de muitos partidos é a de ginecologia-obstetrícia. Já todos sabemos que, ultimamente, vários constrangimentos têm surgido com o encerramento desta especialidade em alguns hospitais do país. Relembremos inclusive que, no verão de 2022, Marta Temido, Ministra da Saúde na altura, apresentou a sua demissão após a morte de uma grávida, que foi transferida do Hospital Santa Maria para o Hospital São Francisco Xavier por falta de vagas nos serviços de ginecologia-obstetrícia. Como se pode ver, é um problema que persiste no nosso país há bastante tempo e, ao invés de se encontrar uma solução definitiva, os partidos limitam-se apenas a culpar o Governo da época ou o atual pelas falhas que vão surgindo, enquanto muitas grávidas continuam a deparar-se com falta de assistência médica.

Vários utentes também se têm visto privados do seu direito a ter um médico de família, uma vez que alguns centros de saúde não têm médicos suficientes para corresponder à procura existente. De forma a responder a tal problema, Xavier Barreto, Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, defende que é necessário começar a fazer escolhas sobre quem deve ou não ter acesso a médico de família, de forma que não existam milhares de cidadãos sem este serviço. Para tal, este sugeriu que os jovens saudáveis fossem retirados da lista para dar prioridade aos utentes mais velhos. Sinceramente, pergunto-me onde é que a escolha de deixar alguns utentes de fora é, efetivamente, uma escolha e onde é que isto combate a falta de médicos. Com isto assumimos que os jovens saudáveis não desenvolverão algum tipo de doença até aos 50 anos (ou mais)? Exclui-se a necessidade de realizar consultas e exames de rotina a pessoas saudáveis, porque devemos assumir tal condição como suficiente e garante de “imortalidade”? Não estamos assim a acentuar as desigualdades económicas, uma vez que nem toda a gente tem possibilidades financeiras para recorrer ao privado?

Claramente, a falta de médicos combate-se com a contratação de mais médicos; e o problema não está no facto de os médicos não quererem trabalhar, mas sim por não haver condições de trabalho aliciantes e dignas, nem condições de ingresso no curso de medicina justas. Falamos de uma profissão em que alguns dos seus profissionais viram as suas carreiras congeladas ou horas extraordinárias por receber; é, de facto, sórdido que uma atividade tão nobre, que salva milhares de vidas diariamente, e que requere tanto estudo e trabalho durante anos, seja desprezada como se tem visto nos últimos anos. Além disto, foi noticiado que abrirão mais vagas para o curso de medicina no próximo ano letivo, contudo, para alguém que já quis ser médico, pergunto-me: com uma nota de ingresso tão alta como é que vai atrair mais estudantes? Ou, por outro lado, qual é a razão para que o exame nacional de Matemática A continue a ser obrigatório para o ingresso?

A verdade é que se tem tentado alterar e afinar a fórmula, mas os resultados continuam a ser os mesmos. Há quem defenda uma maior abertura e acesso do SNS, há quem defende a sua privatização, no entanto, são utentes que pagam com a falta de profissionais, cujo trabalho não é reconhecido, ao terem de esperar horas num serviço de urgência ou anos por uma consulta de especialidade. Afinal estamos diante de um problema de que natureza? E qual será o futuro de uma das maiores conquistas pós-ditadura?

Nos últimos textos, falou-se não só de Justiça e de Saúde, mas também de Dignidade e Direitos Humanos. Que país é este em que vivemos? Estaremos destinados ao futuro que Aldous Huxley ficcionou? É óbvio que nem eu (nem ninguém) tenho respostas para tais perguntas, sendo as minhas únicas opções continuar a ler, informar-me, pensar e escrever sobre tal. A trilogia Admirável Mundo Velho chega, assim, ao fim, e a minha proposta é sempre a mesma: possuir a maior quantidade de informação possível e usá-la em prol da construção de uma sociedade melhor.

  • Parabéns, Dr. António!

    É elvense o primeiro Doutor Honoris Causa por um Politécnico nacional. A escolha recaiu so…
  • “Protecção” televisiva

    Na altura em que escrevo este texto faltam escassas horas para a estreia na TVI da novela …
  • Ainda Estou Aqui

    Na passada quinta-feira, uma semana após a publicação em papel, o Linhas de Elvas colocou …
Carregar mais artigos relacionados
Carregar mais artigos por Redacção
Carregar mais artigos em Destaque Principal

Veja também

RIBAA promove Clube de Leitura Online ao longo do ano

A Rede Intermunicipal de Bibliotecas do Alto Alentejo (RIBAA) vai promover, ao longo deste…