Confesso que nunca havia identificado mais bela coincidência que esta: a de ontem ter-se celebrado o Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor e amanhã assinalar-se o 51.º aniversário da conquista da democracia em Portugal.
Realmente, as datas não estão diretamente relacionadas, mas não deixa de ser uma relação indireta curiosa, já que quando celebramos uma das mais belas artes que temos, a literatura, celebramos em Portugal, 2 dias depois, a Liberdade. Liberdade esta que, justamente, nos permitiu voltar a ler todo e qualquer livro, sem qualquer restrição, esteja ele ancorado a que ideia for. Foi alcançando esta mesma Liberdade que pudemos voltar a pensar e a discutir sobre aquilo que líamos. No fundo, o exercício a que o contacto com a literatura nos propõe só pode ser realizado em democracia.
Desta forma, tendo-se celebrado o livro e celebrando-se a democracia, pergunto-me que estarão a ler os leitores portugueses ultimamente, no seu exercício de liberdade de pensamento? E, tendo em conta os últimos números, poderá quantidade ser sinónimo de qualidade neste contexto?
A 5 de setembro de 2024, na conferência Book 2.0, promovida pela Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), Pedro Sobral revelou dados bastante positivos sobre os hábitos de compra e leitura em Portugal em 2023. Na sua apresentação, o falecido presidente da APEL revelou que 65% dos portugueses compraram livros em 2023, um valor que cresceu 3% em comparação com o de 2022. Afirmou também que, em média, cada pessoa comprou 4,8 livros em 2023, sendo que 82% da população os comprava para consumo próprio. Entre todos estes dados, aquele que se revelou mais animador foi o da faixa etária que mais livros comprou em 2023: o grupo de indivíduos dos 15 aos 24 anos representavam 41% das compras em livrarias.
Neste sentido, se se está a comprar mais livros, também se está a ler mais? O mesmo estudo, apresentado no Book 2.0, revelou que 73% dos portugueses têm hábitos de leitura, sendo que, cada português lê, em média, 5,6 livros por ano, tendo sido os jovens dos 15 aos 24 anos aqueles que mais livros leram em 2023, em Portugal. É inegável o contributo que as redes sociais tiveram para este crescimento dos hábitos de leitura entre os jovens, tal como vários artigos vieram a comprovar nos últimos meses; desde o período pandémico de COVID-19, o Booktok (comunidade de leitores na rede social TikTok) cresceu significativamente, incutindo nos mais novos um forte interesse pela leitura. A meu ver, tal constatação é claramente promissora, uma vez que uma das maiores preocupações da década anterior era justamente o decréscimo do interesse pela leitura por parte dos mais jovens. Uma das estratégias que muitas editoras e associações têm adotado, em parceria com alguns booktokers portugueses, cinge-se justamente à utilização de redes sociais, como o Instagram e o TikTok, para divulgar lançamentos e resenhas literárias. A questão que se coloca agora é: que tipo de livros se estão a ler e quais aqueles mais apresentados pelos booktokers?
O estudo apresentado por Pedro Sobral no Book 2.0, em 2024, revela que o género literário mais vendido em 2023, em Portugal, foi o romance (61%). Entenda-se aqui romance como um género literário caracterizado por um enredo longo, com um contexto espácio-temporal concreto e personagens desenvolvidas que estabelecem uma relação entre si, não tendo de ter necessariamente uma história de amor como central. No entanto, visitando os perfis de alguns dos booktokers mais seguidos em Portugal, observamos que os livros mais discutidos são justamente os ditos “romances clichés” de capas bonitas. Haverá algum problema em incentivar esse tipo de leitura? A meu ver, não, desde que não se incentive somente esse género de livros. Como pessoa que também fala pontual e publicamente sobre livros, sempre defendi que qualquer livro tem o aval de ser lido, desde que adotemos uma postura crítica quando o estamos a consumir. Muitas vezes se insiste em separar a boa da má literatura, quando na verdade a classificação deveria ser entre bons e maus livros, ainda que tanto um processo como outro sejam claramente subjetivos. Pessoalmente, defendo que devemos ler aquilo que faz sentido para nós nesse determinado momento, para que o nosso envolvimento com a história seja altamente prazeroso e enriquecedor. No final, acabarei sempre por defender que retiramos mais de um texto cuja escrita não seja tão fácil, cujo enredo não seja tão óbvio e cujas críticas não sejam tão claras; porém, nem todo o leitor está preparado e capacitado para interpretar Saramago, Dostoiévski, Machado de Assis, Lorca, entre outros.
E, finalmente, chegamos ao último ponto desta indagação: confirmamos que se está a ler mais, mas serão as leituras feitas de qualidade? No ano passado, houve uma forte polémica no TikTok, após uma criadora de conteúdos literários ter afirmado que tinha lido 28 livros num mês. Contas feitas, verificamos que terá lido, aproximadamente, 1 livro por dia. É obvio que cada indivíduo lê à sua própria velocidade e dedica à leitura o tempo que bem entender, porém, pergunto-me: isto é saudável até que ponto? Que informação está a ser retida de cada livro? Conseguirá o cérebro humano processar a leitura de um livro num só dia? Até que ponto é que isto também não pressiona o seu público a sentir que para ser um bom leitor tem de ler uma quantidade exuberante de livros por mês? A verdade é que a maioria dos livros lidos por esta booktoker eram os ditos “romances clichés”, cuja escrita e história eram das mais simples. No entanto, até que ponto isto é um exemplo a seguir? Como é que os jovens se tornarão melhores escritores e terão um melhor desempenho na sua vida académica e profissional quando o seu modelo de literatura se centra em livros em que as personagens vivem uma história um tanto tóxica entre si e que correspondem aos padrões de beleza e aos estereótipos convencionais: ele é forte, frio, desejado, sedutor e não acredita no amor; ela é sensível, “pura”, romântica e fá-lo duvidar.
Uma das coisas que mais me alegra por viver em democracia é justamente ter a possibilidade de ler o livro que queira sem qualquer tipo de condicionamento. Porém, para fazer um bom uso dessa liberdade de expressão e de pensamento que me assiste, acredito que a solução está neste doseamento, em saber distinguir uma leitura para lazer e uma leitura para saber. Os prémios literários, atribuídos por entidades competentes no assunto, tais como Nobel da Literatura, Pulitzer, Camões, Cervantes, entre outros, ajudam precisamente a reconhecer obras merecedoras de ser lidas, seja pela sua complexidade, pela sua crítica ou pela sua mensagem.
O que começou por ser uma tradição catalã baseada numa lenda, em que os cavaleiros oferecem às damas uma rosa vermelha de Sant Jordi em troca de um livro e que homenageava a morte de grandes nomes da literatura, tais como Shakespeare, Cervantes e Garcilaso de la Vega, todos falecidos em abril, passou a ser um dia em que se encoraja à pratica da leitura e em que se destaca “a importância dos livros enquanto elemento basilar da educação e do progresso de uma sociedade” e, acrescento, da democracia – daí a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) ter assinalado o dia 23 de abril como o Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor, em 1995. Aquando da morte de Mário Vargas Llosa, a 13 de abril, vários órgãos de comunicação disseminaram parte do discurso proferido após ser galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 2010: “Aprendí a leer a los cinco años, (…) Es la cosa más importante que me ha pasado en la vida.”; nesse mesmo discurso, o autor referiu ainda “Casi setenta años después recuerdo con nitidez cómo esa magia, traducir las palabras de los libros en imágenes, enriqueció mi vida, rompiendo las barreras del tiempo y del espacio (…)”. O meu apelo final é precisamente esse: aproveitar a magia da leitura para viajar, para ir mais além, de forma que se enriqueçam culturalmente e que abram os olhos face à vida e face ao mundo. Feliz Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor atrasado e Feliz Dia da Liberdade adiantado!
