Não é por acaso que, no título deste artigo, invoco palavras (ainda que não de
forma literal) de duas das figuras mais relevantes para a instauração da democracia em
Portugal: José Afonso, cantor e compositor português, e Salgueiro Maia, militar
português e “capitão de abril”. Face ao que assistimos na noite de 18 de maio de 2025,
dia em que tivemos mais uma ronda de eleições legislativas, acredito que tanto um
como outro estarão, onde quer que estejam, extremamente incomodados e incrédulos
como os ditos acontecimentos.
Uma vez mais, o povo português foi chamado às urnas para decidir o futuro do
país e voltou a surpreender tudo e todos. Recorrendo, por exemplo, a uma sondagem
publicada pelo jornal Público, no dia 9 de maio de 2025, é possível verificar que aquilo
que se estimava coincidiu com a realidade, à exceção da grande reviravolta destas
eleições: o quase empate entre Partido Socialista (PS) e Chega. A sondagem
supramencionada atribuía ao partido liderado por Pedro Nuno Santos 28% dos votos,
tendo alcançado, até à data, 23,38%; ao passo que, as estimativas apontavam que o
partido de André Ventura obtivesse 20% dos votos, estando, de momento, com 22,56%.
Faltando ainda apurar os votos provenientes dos emigrantes, podemos
claramente falar de um grande crescimento da direita em Portugal. Contas feitas, a
Aliança Democrática (coligação PPD/PSD.CDS-PP), juntamente com a Iniciativa
Liberal (IL) e o Chega, possuem um total de 156 mandatos na Assembleia da
República, o que se traduz em 2/3 do número total de deputados (230). O que pode isto
significar? A possibilidade de fazer uma revisão constitucional, isto é, certos direitos
consagrados na Constituição, alguns deles que tomávamos já como garantidos, poderão
ser revistos, alterados e até mesmo excluídos, em última hipótese. Até agora, não há
garantias de que venha a ser realizada, porém, após conversar com o Presidente da
República esta quarta-feira, Rui Rocha, líder da IL, anunciou que vai propor uma
revisão à Constituição, de forma que o Estado tenha um papel menor na economia do
país. Trocando isto por miúdos, os ricos continuarão ricos e os pobres continuarão
pobres, já que haverá uma significativa alteração na carga fiscal, que fará com que o
Estado gere menos riqueza. Simultaneamente, no passado sábado, André Ventura
enviou uma carta a Montenegro e a Rui Rocha na qual define a prisão perpetua, a
“limpeza ideológica” e a despolitização de cargos públicos como prioritárias numa
futura revisão constitucional. E que outras alterações poderão ser feitas? Estas poderão,

por exemplo, estar relacionadas com o direito ao aborto, aos direitos de pessoas
LGBTQIA+ ou o direito à morte medicamente assistida (cuja lei voltou a ser chumbada
no mês passado, pelo Tribunal Constitucional, e que está pendente da nova legislatura
para revisão), já que os valores que esta maioria defende são os da igreja católica, ou
seja, os da família tradicional e ideologias pró-vida.
Assim, falemos do elefante no meio da sala: o crescimento da extrema-direita e a
preocupante diminuição da esquerda na Assembleia da República. Tentarei ir por partes.
Primeiramente, devo confessar que tenho alguma dificuldade em compreender como é
que mais de 1 milhão e 300 mil pessoas conseguem votar num partido com uma postura
como a do Chega. Na verdade, até consigo saber. Por um lado, temos um grupo de
pessoas que não argumenta, que somente diz que “votar no Chega é fixe” e que “o
Ventura é rei”; por outro, temos os indivíduos que se dizem cansados de promessas que
ficaram por cumprir e dos ditos “grandes apoios” atribuídos às minorias. Estamos a
falar de um grupo parlamentar que mais desinformação partilhou nas suas intervenções,
de um líder partidário que sabe como, quando e onde atuar e de um partido que usa as
redes sociais como forma de divulgação, pois alcança um maior número de pessoas e
onde não há um elevado fact-checking como nos órgãos de comunicação tradicionais.
Provou-se que a maioria das informações partilhadas acerca da comunidade imigrante
eram falsas! Assistimos à confirmação da prática de crimes pelos próprios políticos do
Chega, crimes esses que eles mais condenam e criticam em pleno plenário (veja-se que
dos 58 deputados eleitos, 23 deles já tiveram o seu nome envolvido em polémicas ou,
até mesmo, problemas com a Justiça). Portanto, dizem que os outros partidos não têm
legitimidade para governar, mas que legitimidade tem o Chega também? É por não
apresentar uma única medida nos seus cartazes (coisa que os restantes partidos fizeram)
e limitar-se a falar de “corrupção”, “compadrio” e implorar por “uma oportunidade”?
Ou terá sido o episódio do refluxo gástrico que apagou os escândalos do roubo de malas
e da prostituição de menores, por exemplo, e, por isso, mostrou que o partido tinha
todas as competências necessárias?
O cerne do problema está no facto de o eleitorado justamente acreditar que está a
votar num partido alternativo e inovador, quando na verdade se está a mover pelo
preconceito, pela discriminação e pelo ódio. E o mais irónico no meio disto tudo é
constatar que os grupos que o próprio partido oprime votam neste, desde imigrantes,
mulheres, homossexuais ou indivíduos de classe média-baixa. Portugal não precisa de

um sistema que trema, precisa sim de um sistema estável e que progrida tantos em
direitos sociais e económicos, como humanos.
Por um lado, consigo visualizar este dito “descontentamento” para com a
esquerda, na sequência de promessas que não foram cumpridas e de algumas polémicas
nas quais certos partidos estiveram envolvidos. No entanto, não consigo compreender
como é que isto se pode refletir em apenas 1/3 de mandatos, apesar de uma taxa de
abstenção de 35,62% e de uma mudança da intenção de voto da esquerda para a
extrema-direita. Pessoalmente, não me recordo de melhor altura de estabilidade política
que a que nos deu a legislatura de 2015-2019, a Geringonça. Não só por ter derrubado o
governo de Passos Coelho, que claramente fez uma péssima gestão da crise económica
que estávamos a vivenciar, como também alavancou alguns progressos a nível social e
económico. Para não falar da forma como o governo de António Costa geriu, nos anos
de 2020 e 2021, a pandemia de COVID-19, que apesar das falhas que veio a revelar,
creio que, de modo geral, feita uma gestão adequada de um cenário que ninguém previa.
Logo, ainda que a taxa de abstenção seja a mais baixa dos últimos anos, parece-me
inconsequente não votar porque “não se crê nos políticos”. Votar não é só um direito, se
não também um dever. O direito ao voto foi bastante difícil de alcançar e desprezá-lo
implica uma diminuição da segurança do regime democrático.
Para ser honesto, prefiro um governo que avance paulatinamente, que um que
represente um retrocesso em leis que foram tão difíceis de aprovar. Votar em alguém
que demonstra alacridade por ter acabado com o bipartidarismo em Portugal e que
refere ter conseguido “algo que não acontecia desde 25 de Abril de 1974” é, sem
sombra de dúvida, das coisas mais assustadoras que consigo identificar, de momento, no
ser humano.
Gostava de me fixar num outro ponto que considerei altamente fulcral e que é
relevante para aquilo que será o futuro. Se analisarmos os indicadores
sociodemográficos fornecidos pela plataforma EyeData, verificamos que a AD teve
melhores resultados em concelhos onde há mais casamentos católicos; que o PS se
destacou em concelhos com maior taxa de mortalidade e menos população jovem. Já o
Chega conquistou o eleitorado mais jovem e os municípios onde se registam mais
crimes e onde menos pessoas têm o ensino secundário completo. Como seria de esperar,
a Iniciativa Liberal teve mais votos em concelhos onde há maior poder de compra e
onde se adquirem casas mais caras; curiosamente, este quadro sociodemográfico

também caracteriza o eleitorado do Livre. Por fim, o Bloco de Esquerda, que foi o
partido que mais mandatos perdeu, teve melhores resultados em municípios onde a taxa
de desemprego é mais elevada e onde as rendas de arrendamento são mais caras.
Conclusão que retiro de tudo isto? Se fores um homem cisgénero, branco,
heterossexual, católico e de classe média-alta, muitos parabéns, até terás sorte na
próxima legislatura. Se fores como eu e faltares com algum destes pontos…desejo-te
sorte.
Porém, atenção e que fique claro! Com isto, caro leitor, não estou a defender
uma total eliminação da direita no Parlamento, porque, se assim fosse, também eu
estaria a ser extremista. O diálogo e o debate são claramente importantes para a
progressão de um país, já que é através da discussão de diferentes ideias que se chega a
um consenso adequado. Contudo, essa discussão nunca deverá colocar em causa a
integridade e os direitos do próximo; todos os cidadãos deverão ser tidos como iguais e
respeitados, inclusive para o próprio debate ser saudável.
Agora, caro espectador, não me resta muito mais a dizer, se não que se sente
confortavelmente no seu sofá, porque o “Salve-se quem puder” acaba de começar!

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