Amália Rodrigues, ou apenas Amália – tal é a notoriedade que atingiu que o nome próprio basta para apresentá-la -, a grande alma do fado, merece uma comemoração nacional de projecção internacional que ajudaria, entre outras finanças, a relançar a cultura portuguesa neste ano pandémico de 2020 em que se assinala o centenário do seu nascimento em 1920 em Lisboa numa família oriunda da Beira-Baixa.
As comemorações têm sido de alguma forma pensadas, nomeadamente pela Fundação Amália Rodrigues por ela instituída e pelo Museu do Fado, em Lisboa. Porém, dada a dimensão mundial da mulher e artista, acredito que podiam e deviam abranger todo o país e seguidamente projectar-se em palcos internacionais onde o seu talento é aplaudido há muito.
É evidente, certamente graças à inteligência e rasgo que lhe permitiram que fosse única e abrangente sem negar a sua personalidade também ela única e marcante (à semelhança do seu raciocínio simples e complexo, no sentido do que se poderia chamar de espírito português), que não se ligou a correntes políticas – mesmo após o 25 de Abril em que foi habitual rotular artistas tendo em conta as suas ligações político-partidárias. Por Amália Rodrigues não ter cultivado essas proximidades terá tido uma liberdade e simultaneamente uma distância que hoje não permitem que alguém se aproprie do seu legado: é cantada na rua por todos. É também sabido que por ser “mais monárquica” (dito pela própria) não é confortável citar todas as suas declarações. Mas nem isso impossibilitou que fosse sepultada no Panteão Nacional e foi precisamente essa forma de estar desempoeirada que fez com que fosse notada pelas suas qualidades desde cedo.
A sua carreira baseia-se e evoluiu, sendo inovadora numa linha tradicional, com um equilíbrio raro e genial que nos parece impossível de conseguir. Ao mesmo tempo que gravava indo e reinterpretando os temas do cancioneiro tradicional como os vários “malhão”, volta-se para a literatura histórica e canta Luís de Camões num EP lançado em 1965 com música de Alain Oulman. Canta dos Sonetos o “Erros meus” (quem não conhece este clássico da literatura portuguesa? “Erros meus, má Fortuna, Amor ardente…”) que eram já, ao que parece, o fado presente no grande poeta e em Portugal. Aventura-se também a desafiar os novos poetas para o fado. David Mourão-Ferreira certamente será um exemplo paradigmático dessa fase de Amália e, escusado será dizer, não agradou nem aos puritanos do fado que consideravam que estaria a misturar coisas inconciliáveis nem aos intelectuais e académicos que o consideravam um estilo menor e pouco cuidado na forma e nas letras. Amália contudo não se deteve corajosamente com o arrojo que esta inovação exigiu; não se deteve com as críticas de ambos os sectores da sociedade de então e colocou o fado num patamar internacional nunca visto. Claro que houve vozes marcantes no fado universitário de Coimbra e no de Lisboa, de que não se pode esquecer Hermínia Silva, mas sem esta dinâmica. Foi Amália uma artista maior cuja voz foi compreendida em Paris, em Itália onde cantou repertório local, em Amsterdão, no Brasil, para citar apenas alguns. Talvez fizesse sentido uma apresentação documental levada a cabo por Portugal através das instituições da Cultura nesses territórios e salas onde influenciou e conheceu o aplauso da crítica internacional, levando não apenas o fado mas toda uma mensagem da cultura portuguesa com sucessos hoje lembrados nos centros de espectáculos mais emblemáticos do mundo.
Amália há só uma. Que não aconteça, com os nossos autores, o que Almada Negreiros figurava quanto a Camões: “E ainda há quem faça propaganda disto:/ a pátria onde Camões morreu de fome/ e onde todos enchem a barriga de Camões!”.

Tiago Matias, licenciado em Estudos Europeus (Faculdade de Letras de Lisboa)

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