Vamos tomar o pulso à saúde mental no norte Alentejo. Olhar para os efeitos da pandemia nesta área da saúde. Ver de perto uma realidade de dificuldades conexas, onde a escassez de recursos humanos aumenta a dificuldade de resposta às necessidades de uma população isolada e envelhecida, implantada num território extenso. Vamos perceber como estão estruturados os serviços e quais as soluções e o esforço desenvolvido por uma equipa escassa, constituída, à cabeça, por 6 psicólogos e 4 psiquiatras que prestam cuidados a um universo populacional de cerca de 118 mil habitantes. Vamos ajudar a derrubar o estigma que recai sobre as doenças do foro psiquiátrico. E acima de tudo, vamos deter-nos sobre a problemática do suicídio. Tentar identificar as causas e procuraras soluções.
Desde que foi decretado o primeiro Estado de Emergência em Portugal, a 18 de Março de 2020, entrámos oficialmente num registo de vida pendular. Confinamentos, desconfinamentos, restrições de circulação, saídas precárias, suspensão das medidas de contenção, dever ou obrigação de ficar em casa, tele trabalho, autorização de regresso à empresa, aulas presenciais, ensino à distância, isolamento, endurecimento das medidas de contenção, alívio… A incerteza passou a ser a lei vigente e a sensação de que a vida desapareceu e que nunca mais vai voltar ao normal está instalada.Os desafios que se colocam são exigentes e nem todos temos capacidade de resposta e adaptação. Facilmente a preocupação evolui para a perda de funcionalidade e daí à entrada numa depressão pode ser um pequeno passo. Se tal acontecer, o importante é procurar ajuda, alertam os profissionais da área. Há o perigo de se pensar que estamos ansiosos porque estamos a atravessar tempos terríveis e isso pode confundir os sinais ou retardar o recurso aos cuidados necessários. As perturbações psiquiátricas são um problema sério de saúde pública. São geradoras de grande angústia, são incapacitantes e matam. O silêncio é o pior inimigo da solução e na área da saúde mental é um grande óbice e um retardante à cura e ao evitar de desfechos trágicos.
O impacto que a pandemia está a provocar na saúde mental da população do norte Alentejo não escapou à conversa com o psiquiatra Manuel Sardinha, Director do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da ULSNA. No entanto, o tema fulcral do diálogo foi o suicídio, um problema endémico que é necessário encarar de frente. A conversa, que agora recuperamos, decorreu no mês de Setembro de 2020, por ocasião do Dia Mundial do Suicídio. Nesta franja territorial muitos são os que terminam a vida no fundo do poço, que disparam a caçadeira sobre si próprios, que ingerem veneno, ou que aparecem a balouçar na corda do enforcado. As causas são diversas, mas há uma evidência: o suicida é desprovido da estrutura necessária para lidar com os seus desafios, sejam eles pontuais ou crónicos e, na maioria das vezes dá sinais da ideação de pôr fim à vida. Por isso é necessário que toda a sociedade esteja atenta e que o indivíduo vulnerável exteriorize, que fale, porque “falar é a melhor solução”.
Setembro é o Mês Amarelo, ou o Mês da Prevenção do Suicídio; dia 10 de Setembro é o Dia Mundial da Prevenção do Suicídio. As datas foram estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) , parceira da Federação Mundial para a Saúde Mental, que em 1990 resolveu decretar 10 de Outubro como Dia Mundial da Saúde Mental. Anualmente a Direcção Geral da Saúde (DGS), na senda das datas estabelecidas pelas duas entidades internacionais, promove várias campanhas de forma a chamar a atenção e apontar soluções para a problemática da saúde mental, em geral, e para a prevenção do suicídio em particular, tendo o cuidado de chamar os Departamentos de Psiquiatria e Saúde Mental (DPSM) de todo o Alentejo (Alto Alentejo, Alentejo Central, Baixo Alentejo e Alentejo Litoral) a participar activamente nas campanhas que promove em defesa da saúde mental e do consequente combate aos números do suicídio que nesta franja territorial atingem valores alarmantes. Os dados oficiais mais actualizados de que dispomos, publicados pela PORDATA, reportam-se a 2018. Do total de 989 portugueses que nesse ano puseram termo à vida, 114 eram alentejanos. Estas cifras são um contributo relevante para a negra estatística mundial. Segundo a OMS, no mundo, a cada 40 segundos, ocorre um suicídio. A faixa etária de maior prevalência é a de 15 a 29 anos, e o maior número de casos acontecem em países de baixos rendimentos. Ainda segundo aquela instituição, 90% dos casos podem ser evitados.
Em linha com a OMS, “Falar é a melhor solução” foi o mote da campanha desenvolvida em 2020 pelo DPSM do Alto Alentejo. O Psiquiatra Manuel Sardinha explica-nos a importância dessa verbalização tida como fundamental no combate ao suicídio, dá as pistas para a identificação dos sintomas e põe em relevo a importância de toda a atenção que deve ser dada e esta problemática, quer pelos profissionais de saúde, quer por cada um de nós.
A atenção que a OMS e todas as entidades envolvidas estão a dar à problemática do suicídio resulta de um esforço e de uma valorização acrescida em relação às questões da saúde mental ou é a ocorrência do fenómeno em si que está a causar grandes preocupações e a exigir numa maior intervenção e mobilização?
Eu diria que as duas razões. Por um lado a relevância dos problemas ligados à saúde mental e por outro a relevância da problemática mais específica, pelo menos em algumas áreas do mundo e também em Portugal, neste caso no que diz respeito em particular ao sul do país como o Alentejo e o Algarve.
Enquanto parceiro da campanha de 2020 promovida pela DGS em torno da prevenção do suicídio, o Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da ULSNA escolheu a frase “Falar é a melhor solução” como mote para as actividades que desenvolveu. Qual é a mensagem que pretendem transmitir através desta frase?
Se nós consideramos que falar, pelos menos no primeiro passo, é a melhor solução, obviamente que não dizemos que falar é a melhor solução para resolver uma intenção suicida, quando ela aparece. O que pretendemos é alertar que, quando ela se manifesta deve-se começar por falar com alguém, que pode ser num primeiro momento um familiar, um amigo, um colega, etc. Pode ser a melhor solução para se iniciar um processo que depois pode, ou não, ter desenvolvimentos, depende, que poderão até chegar auma especialidade psiquiátrica, por exemplo, para ser avaliado o melhor modelo de intervenção, já enquadrado num contexto terapêutico para a pessoa em causa. Ou seja, sempre que a ideia corre por nós, devemos verbaliza-la, seja com quem for, em vez de o calar.
O suicídio revela, possivelmente, um estado emocional de perturbação, mas também será um processo algo silencioso, em que nem sempre transparece a intenção. E porventura também haverá a desvalorização de alguns sinais. Talvez se torne algo complicada uma abordagem.
Talvez. Não podemos criar uma grelha para estas coisas, porque o ser humano é diverso, seja na saúde, seja na doença. Agora, por parte de quem ouve, sendo ou não portador de um saber diferenciado e de uma capacidade de ajudar o outro também algo diferenciada, haverá diversos níveis de o fazer, de o perceber. É estar atento àquilo que a outra pessoa está a querer verbalizar, a querer transmitir. É evidente que nenhum de nós é adivinho. Nem sequer os especialistas. Em última instância ninguém sabe o que se passa na cabeça de cada um, embora o que se diz e como se diz possa sugerir que passa pela cabeça de alguém uma ideação desse tipo. Agora uma coisa é certa, por parte de quem o sofre, se o transportar só para si obviamente que dificulta a percepção que o outro pode ter e a possibilidade de o ajudar efectivamente. “Falar é a melhor solução” é desde logo dirigido a quem transporta o problema consigo. O que pretendemos é que não o cale, que o verbalize. O que se espera da parte de quem transporta a ideação é que encontre quem o ouça. Que procure ajuda.
A tendência para pôr termo à vida é porventura uma atitude transversal ao ser humano em alturas de desespero. Será assim? O que faz com que uns não passem de uma atitude superficial, que outros tentem cometer e que outros cheguem a concretizar?
Mais uma vez a resposta fácil. Não temos grelhas para isso. Sabemos é que temos a tal diversidade que resulta de que embora sendo todos iguais, somos todos diferentes. Somos todos diferentes em termos da nossa herança, somos todos diferentes na forma como crescemos, como nos desenvolvemos, em função dos ambientes em que vivemos. A cultura de uma maneira geral, não é? Obviamente que os nossos comportamentos no sul da Europa não são exactamente iguais, em termos culturais aos de um país da Ásia, ou a um país africano ou a de qualquer outra zona. Nós temos especificidades e há também coisas que para o bem e para o mal aprendemos com aqueles que estão à nossa volta. Porventura alguns comportamentos suicidários ou para-suicidários também resultam de uma aprendizagem que se faz. A desesperança também se ensina, ou também se aprende, embora a desesperança também possa residir em nós.
Ainda assim, é possível descrever o quadro emocional da pessoa que comete suicídio?
Não, porque o que leva a pessoa ao acto do suicídio pode ser diverso também. Pode ser algo impulsivo, ou uma coisa que resulta no momento de uma situação menos boa, que é sentida como particularmente frustrante, e pode acontecer num contexto impulsivo. Pode suceder num contexto em que a pessoa está perturbada por alguma coisa que ingeriu, que consumiu, uma substância que altere a qualidade do seu humor e até do seu pensamento, que a leve a agir não tendo a real noção das consequências. Portanto, pode ser uma ideação”vaga” de acabar com a vida que, num acto não verdadeiramente pensado, se revela fatal. Ou então pode ser o resultado de uma doença que a pessoa transporta, nomeadamente um quadro depressivo arrastado que não foi tratado.
O suicídio será frequentemente a consequência de outras patologias?
Pode ser. Nomeadamente as patologias ligadas à depressão. Quando por alguma razão essa depressão não está devidamente tratada, estabilizada, obviamente que o suicídio é algo que pode acontecer. Ou mesmo um quadro de outra etiologia, em que a pessoa de alguma forma com o seu pensamento perturbado, por algo que lhe fosse dito, ou numa tentativa de fuga para um sofrimento, acaba por responder, dentro da sua incapacidade, em vez de o fazer de forma assertiva, com um acto em que pode por termo à vida.
Ou seja, também pode ser uma resposta a questões sociais, familiares e económicas.
Claro que sim. O desemprego, a pobreza, a solidão, a doença, a doença crónica a desertificação.
Todos estes elementos com uma forte incidência no norte alentejano.
Sabemos que o Alentejo é uma das zonas mais envelhecidas do país, onde se encontram também bolsas marcantes no que diz respeito à pobreza. A população idosa, a rarefacção no que diz respeito à distribuição da população por um território que é grande. A emigração em que partem os mais novos e vão ficando os mais velhos. Tudo isso são elementos que depois podemos ter em conta. E é claro que também as aprendizagens que fazemos. Se nós vivemos num meio onde “é prática comum” respondermos dessa forma a determinadas situações, se é assim que aprendemos a reagir à vida, ou aos seus contratempos, obviamente que também é um factor a ter em conta. Em zonas onde há muita casuística no que respeita a suicídio, porventura as pessoas também aprendem a responder dessa forma às suas dificuldades do dia- a-dia.
É possível traçar uma curva evolutiva da incidência do fenómeno no Alentejo? Ela tende a crescer ou a baixar neste momento?
Nós não temos números, infelizmente, mas temos a percepção que resulta da nossa prática. Eu neste momento atrevo–me a dizer, com tudo o que isto pode ter de interrogações pelo meio, que neste contexto pandémico temos a percepção de que existirá um ligeiro aumento de tentativas de suicídio e um ligeiro aumento de suicídios consumados.
Definir perfis também será arriscado, mas há uma idade, ou pelo menos há grupos que potencialmente sejam de maior risco?
Ao fim e ao cabo, em resposta a isso, o que já fomos dizendo. Patamares etários em que as pessoas tendem a estar mais sós, que transportam mais doenças físicas e mentais, e que há dificuldade em chegar até elas, pela distância e pelas acessibilidades, o que dificulta dar-lhes o acompanhamento necessário. As questões económicas também. Sabemos que o dinheiro não abunda num país como o nosso e que as pensões dos mais idosos, infelizmente, em muitos casos têm valores bastante baixos, o que faz com que, apesar de toda a estrutura social montada haja muita gente a viver com grandes dificuldades. A própria ansiedade que resulta destes tempos em que as pessoas acabaram por ficar mais isoladas, mais fechadas, confinadas às suas casas, às suas famílias, com o que isso tem de positivo e negativo. Nesta situação os conflitos tendem a apresentar-se de uma forma mais viva e mais intensa.
Prestar apoio no actual contexto torna-se particularmente difícil.
Não deixámos de trabalhar e de atender doentes, mas é evidente que o atendimento presencial foi muito diminuído. Aumentámos o número de atendimentos à distância, através do contacto telefónico, mas em algumas situações, o atendimento presencial é necessário. É importante, avaliar não sóo que o paciente diz, mas também a forma como o diz. É importante analisar a expressão facial, a qualidade do discurso, o ritmo, a forma como se arranja, por comparação com o antes em que a pessoa estaria bem, ou não estaria bem. Tudo se manifesta, tudo isso é importante.
São indícios que só os profissionais de saúde estão treinados e habilitados a captar.
Que necessariamente não nos conduzem à existência de ideação suicida, mas que nos ajudam a perceber que aquela pessoa, no que diz respeito à qualidade do seu humor, da sua disposição não está bem. É até possível que em termos verbais nos diga que está tudo mais ou menos igual, ou mais ou menos estável, mas depois aquilo que é dito não corresponde ao que o terapeuta, o médico, o psicólogo observa. Tem que haver, ou deve haver normalmente uma concordância entre o que se diz e a forma encontrada para o dizer, seja por palavras seja por comportamentos.
Indo também um pouco à raiz da crença e da avaliação social, é um mito ou há efectivamente alturas do ano que são mais propícias à ocorrência deste fenómeno?
Não, não émito. A doença mental e a doença afectiva e alguns sub tipos dessa doença afectiva tendem a manifestar- -se mais ou na altura da Primavera, ou na altura do Outono. Conjugando diversos factores, a possibilidade de resultar nesse contexto um comportamento com essas características pode efectivamente ter uma expressão quantitativa estatística mais intensa. Não é um mito, não é. Depois também temos associada a questão da luz, da presença da luminosidade. A existência desses factores naturais pode afectar.
Há até a tendência para fazer uma comparação com os países nórdicos, onde há uma menor luminosidade e onde a expressão do suicídio é bastante elevada.
De uma maneira geral nós sabemos, ou julgamos saber, que as condições sócio económicas desses países são substancialmente diversas dos países do sul, nomeadamente Portugal, mas existirão outros factores. Porventura a expressão da afectividade a norte não é tão intensa, como é mais a sul. Há efectivamente a questão da luz. Há dias em que é praticamente ausente. Pronto, lá está, o distanciamento afectivo parece ajudar desde logo a um certo isolamento.
Há também, de algum modo, a ocorrência do fenómeno de imitação?
Há. E era isso que lhe dizia há pouco. Estava a falar da aprendizagem que ao fim e ao cabo vamos fazendo dos nossos meios e da cultura que nos é própria. Não vou dizer que é o dia-a-dia, mas não é invulgar confrontarmo-nos com situações em que existe esse tipo de comportamento suicidário ou pelo menos para-suicidário e que resulta, objectivamente, do nada, salvo seja, em que (e falo em idades mais jovens), não é detectável uma patologia, seja familiar, ou do próprio, e que num contexto de frustração, de não resposta imediata àquilo que sente (neste caso estou a pensar no jovem adolescente,) a saída é essa porque porventura não teve oportunidade de aprender respostas alternativas, desde logo, e porque também de alguma forma viu com demasiada facilidade à sua volta que essa é ou foi a “saída”, encontrada por A, por B ou por C, face às dificuldades, que não sendo exactamente as suas, mas que eram conhecidas lá na terra, lá no meio.
Ou até um influencer, uma figura pública, que possa cometer.
Ou até um influencer. Ultimamente temos observado nos meios das redes sociais e sabemos que estas questões estão presentes, nomeadamente com os mais novos.
Qual é o acompanhamento clínico que é dado a quem tenta cometer suicídio? Quem tenta por norma é reincidente e procura consumar?
E lá vou eu fugir à clareza da resposta. Em primeiro lugar, quem o faz uma vez não quer dizer que não o volte a fazer, ou que possa vir a fazê-lo, mas há uma coisa que é essencial: que haja a oportunidade de se criar uma equipa que trabalhe a situação e quea trabalhe até ao momento em que é considerado que ela está suficientemente estável para não necessitar da continuação desse acompanhamento. Todas essas situações aconselham, eu diria até, exigem, toda uma intervenção de ordem psicoterapêutica e porventura também psicofarmacológica. E para isso são necessários recursos.
Refere-se aos recursos humanos? No distrito de Portalegre são suficientes para as necessidades que existem?
A capacidade de resposta que o distrito tem em termos de psiquiatras e psicólogos, é assustadoramente pequena. Não tenho exactamente a certeza, posso estar a lançar para o ar um número que não corresponda no momento exactamente à verdade, mas julgo saber que actualmente, para todo o nosso distrito, em termos dos cuidados primários (estou a falar do sistema público, claro), existem 4 psicólogos espalhados pelo distrito, que não tendo uma forte densidade populacional (cerca de 118 mil habitantes), tem uma enorme dispersão. 4 psicólogos a nível dos cuidados primários é um número irrisório. Se lhe disser que em termos hospitalares existe apenas um psicólogo. E porque é que eu digo que existe um psicólogo? É porque efectivamente existem dois, mas esses dois não trabalham só em saúde mental, porque dadas as necessidades há outras áreas assistenciais onde é importante estar um psicólogo. Portanto os recursos a esse nível e falando de psicólogos, estão muito, muito aquém das necessidades. Se pensarmos na necessidade do médico psiquiatra, estamos também numa situação francamente má.
Quantos clínicos existem neste momento?
Actualmente especialistas dentro do serviço público no Alto Alentejo estão dois, sendo que existem mais dois que estão a aguardar um concurso que os deixe verdadeiramente nessa condição, mas vamos dar tudo por igual e vamos dizer que neste momento temos quatro especialistas, quatro psiquiatras. Depois temos dois colegas que estão agora a fazer a sua especialidade. Mas como este serviço não tem idoneidade total formativa, porque o nosso hospital não tem os recursos que permitem fazer toda a formação localmente, passam parte do tempo fora.
Ou seja, o Alentejo continua a não ser atractivo para os profissionais da saúde.
Não, nem de longe, nem de perto. Tem sido recorrente, e já estou aqui há muito tempo, que os concursos fiquem a descoberto. Vamos tendo um ou outro prestador de serviços que vem fazer alguns dias de urgência. Já tivemos períodos em que tínhamos alguns colegas que vinham fazer um dia de consulta, mas actualmente (Setembro de 2020) isso não acontece. Isto para não falar de outros profissionais que são absolutamente essenciais no que diz respeito à saúde mental e neste caso à psiquiatria. Já não estou a falar em terapeutas ocupacionais, no número de enfermeiros considerado necessário mas com a especialidade em saúde mental. E quando nós falamos em equipas para lidar com estas situações, claro que precisamos de médicos psiquiatras, claro que precisamos de psicólogos, claro que precisamos de terapeutas ocupacionais, claro que precisamos de enfermeiros com a especialidade em saúde mental, é claro que precisamos de assistentes sociais. Isto é muito complexo. A nossa actividade deverá diversificar-se por todas estas áreas. Há doentes que necessitam do trabalho de uma equipa que envolve todos estes sectores profissionais. Um trabalho nesta área não se esgota nos limites de um gabinete. Devemos ter a capacidade de formar equipas para irmos para a comunidade.
Naturalmente essa ida à comunidade também teve que ser alterada devido à pandemia.
Sem dúvida. Apesar das nossas limitações, estávamos a sair para fazer uma consulta de proximidade pelo menos nos lugares onde está mais concentrada a população do norte alentejano. Estávamos a ir a Elvas, Ponte de Sor, Sousel. E esta situação veio cortar isso. São as pessoas que têm que se deslocar novamente aqui, o que complica. Mesmo que se consiga fornecer o transporte a quem não tem capacidade económica, a acessibilidade que à partida já não era boa, está francamente mais fragilizada pelas condições próprias da situação em que vivemos. Esta ida para o terreno que estávamos a conseguir, com muita dificuldade, era importante porque há situações em que é necessário acompanhar o doente pontualmente na sua localidade, no seu meio de origem, porque muitas vezes importa trabalhar não só o doente, mas o contexto em que ele se encontra, no local onde ele está. De facto o atendimento à distância cresceu e em algumas situações e é um complemento importante, e para alguns doentes é o acompanhamento necessário e suficiente durante algum tempo, mas para outros não chega. É claro que temos a urgência a funcionar, e as pessoas em última instância também se podem socorrer desta possibilidade, embora nós não tenhamos psiquiatra para poder estar na urgência geral todo o dia e todos os dias da semana, mas é sempre um local onde se podem dirigir, onde haverá sempre uma resposta. Porventura em algumas situações não será necessário o médico psiquiatra. A ser mesmo necessário o doente será encaminhado para a nossa retaguarda que é em Lisboa. É claro que isso lá trás a distância, e todos os incómodos associados, mas não falta uma resposta que tem que ser dada.
Em termos de internamento, qual é a capacidade que o hospital tem?
Nós temos internamento com 11 camas. Em tempos que já lá vão tivemos 15, depois houve uma redução, mas temo-nos mantido com 11.
Teme que a escassez de recursos resulte numa crescente dificuldade em dar resposta aos efeitos da pandemia, que podem agudizar a necessidade de recorrer aos serviços?
Relativamente a esta problemática levantada com a Covid 19, o problema é não sabermos quando isto vai terminar. Prevemos que irá haver uma ressaca depois de tudo isto. Contamos com todas as consequências, nomeadamente os efeitos sócio económicos. Vai haver alterações no campo dos rendimentos das pessoas, do trabalho ou da ausência dele, vão ficar limitações, muitas pessoas não vão poder continuar a partilhar da mesma maneira a sua vida de família. As perdas que entretanto ocorreram a esse nível, e a mágoa que fica nestas situações em que não há de todo uma resposta terapêutica para as evitar, nós vamos ter que viver com isto. E essas consequências se calhar vão durar bastante tempo.
É inevitável que nos próximos tempos haja uma maior necessidade de atenção e atendimento nesta área.
Exactamente. É claro que eu diria, e modéstia à parte, que neste serviço, apesar da limitação imensa no que respeita aos recursos humanos, não baixamos os braços e acho que temos conseguido desdobrarmo-nos para dar, na medida do possível, respostas. Por outro lado, infelizmente no decurso deste ano perdemos três prestadores de serviço. Ficou uma “imensidão” de doentes sem psiquiatra atribuído e é claro que os que ficaram não conseguem, nem pensar, absorver todos esses que ficaram sem o seu psiquiatra, mais os que estão sempre a cair. As solicitações vão-se mantendo e de facto há uma tendência de virem a aumentar devido a este contexto em que vivemos. Portanto a situação não está fácil.
Para aliviarmos essa pressão que tem tendência a agudizar-se, é possível prescrever-nos uma higiene comportamental? Qual a linha de comportamento que devemos adoptar para não nos fragilizarmos tanto emocionalmente, como devemos gerir o nosso dia-a-dia de forma a obviar o sofrimento individual e aliviar essa sobrecarga que se prevê que venha a acontecer?
Desde logo devemos manter as nossas rotinas e porventura ir buscar coisas que já fizemos e que deixámos de fazer por esta ou por aquela razão. Tanto quanto possível podermos estar com aqueles de quem gostamos, a fazer o que gostamos e podemos fazer, dentro de uma rotina em que se deve manter o cuidado de ir para a cama e levantar a horas certas. Fazer o que nos é habitual fazer e inventarmos ou reinventarmos outras coisas que ou nunca chegámos a fazer ou deixámos de fazer, e que nos eram gratas. Devemos cuidar-nos, higienizar-nos, não só em termos do vírus, mas de uma maneira geral higienizar-nos, cuidarmos da nossa imagem, do nosso aspecto. E depois falarmos, partilharmos. Não temos que andar de bandeira na mão, mas haver essa capacidade de partilha elegendo o nosso interlocutor que é ou o tal amigo, ou o tal familiar ou o seu centro de saúde, o seu médico de família, que é aquela pessoa que, porventura nos conhece um pouco melhor, a nós e a nossa casa, ou pelo menos aqueles que lá habitam. Para aqueles que professam uma fé, muitas vezes esses espaços, as igrejas, os lugares onde aqueles que comungam das mesmas crenças religiosas se juntam, também são lugares onde as coisas podem ser partilhadas de uma maneira geral. Não devemos guardar as preocupações só para nós, porque mais tarde ou mais cedo elas vão alargando e podem ter desenvolvimentos que não são aqueles que consideramos os mais saudáveis. Estar atento! Conhecendo-nos, procurando conhecermo-nos. Cultivar os pequenos lazeres como passear, por exemplo, caminhar, praticar um desporto, ter um animal de companhia, ter acesso à música de que mais se gosta, ao livro ou ao autor que mais nos apraz. São coisas dispersas mas ao fim e ao cabo devemos procurar, tanto quanto possível, fomentar gestos que nos permitam ter alguma qualidade de vida, tendo a noção de que há contingências que ultrapassam a nossa vontade.
Por outro lado, se somos portadores de alguma patologia na área da saúde mental, pese embora as contingências que eu falei à pouco, procurar entrar em contacto com aquele ou aqueles que nos podem ajudar. Há pouco comecei por falar nos cuidados primários de saúde, mas se a pessoa já está inserida em alguma estrutura diferenciada neste campo e desde logo em psiquiatria, se por alguma razão não está a acontecer o contacto por parte daqueles que cuidam de nós, então nós tomamos a iniciativa de contactar. Se precisamos de ajuda, há que acelerar um contacto, há que acelerar uma consulta, há que acelerar ou porventura coordenar uma ida ao serviço de urgência. Portanto, cuidar de nós próprios dessa forma, ou seja, também estarmos atentos aos nossos próprios sinais, não só aqueles que os outros veem em nós, mas aqueles que nós próprios reconhecemos e termos a capacidade de os expor.
O quadro que traçou é o quadro real, agora acrescido pela pandemia. Apesar disso há uma desestigmatização em relação às questões da saúde mental, ou essa ainda continua a ser uma barreira importante?
Não sei se é importante. Continua a existir, e eu diria que por ventura no passado foi muito mais marcante do que hoje em dia. Mas infelizmente, pelo menos em alguns meios, saber-se que aquela pessoa necessita de cuidados no campo da saúde mental faz dele um maluco, faz dele um doido, faz dele a pessoa que acaba por ser menos válida até e desde logo em termos de reconhecimento social. Infelizmente hoje isso ainda acontece. Acho que de uma forma menos pesada que há uns anos atrás, mas apesar disso ainda encontramos pessoas que procuram o apoio, a ajuda, tentando dissimulá-la o mais possível. Isso vê-se por exemplo pela hora em que solicitamque seja marcado um atendimento presencial. Infelizmente ainda acontece de uma forma inadvertida e inconscientemente, até em contextos sociais, pegarmos em piadas onde aparece o alentejano, o doido, o maluco. São muitas vezes objecto do anedotário. Não quer dizer que não ser possa brincar, mas é elucidativo.
Arlete Calais
(Entrevista publicada na edição de 25 de Março do jornal Linhas de Elvas)