Nos últimos meses o olhar da avó apagou-se. Uma cegueira inusitada abateu-se sobre os grandes olhos de um azul esbatido e seco. Agora que penso melhor, perder a visão talvez fosse um desfecho anunciado. Era nos olhos que a avó despejava toda a amargura. Era por ali que drenava a alma dorida. E toda a gente sabe que quando o coração é trespassado por uma dor intensa, explode, causando um jorro hemorrágico que escorre pelos olhos de forma aluvionar. O rio que a avó chorou deve ter acumulado muitos sedimentos. Tantos, ao ponto de lhe obstruírem gradualmente a luz, até a deixarem na escuridão total.
Ficar sem ver foi apenas o último abandono de uma vida espinhosa, mas gosto de pensar que trouxe um benefício: poupar a avó olhar de frente para a morte, no dia em que se encontraram. Deus parece ter reforçado esse cuidado, porque antes de lhe retirar a visão, levou-lhe a razão, a racionalidade, obsequiando-a com um passe para um mundo de fantasia, construído pelo cérebro dela, que se encarregou de edificar um castelo onde se via perpetuamente jovem, rodeada de gente que pertencia a um passado longínquo mas que já não estava no mundo dos vivos. Paradoxalmente, a loucura em que se viu imersa dilui-lhe a memória recente, e os que a rodeávamos passamos a ser pendularmente conhecidos e desconhecidos. Entes ora queridos, ora odiados, umas górgonas ameaçadoras ou umas dríades: ninfas com poderes curativos e apaziguadores.
Não deixa de ser curioso o recurso a uma analepse sempre que falo da minha avó paterna. Raramente começo por recordá-la a partir da minha tenra infância e ponho quase sempre o filme a rebobinar, a andar de trás para a frente. Suspeito que seja assim pelo impacto causado pelos últimos anos de vida da minha avó, decorridos num quadro sem diagnóstico especializado, numa altura em que a saúde mental era incipiente e até relegada. Usando o léxico usual à época, a avó estava louca, ou dito de forma mais rebuscada, padecia de esquizofrenia ou demência. Apesar de ser uma septuagenária, acabada de entrar na década sete, os médicos consideraram que o problema resultava da idade, e que seria recusada num contexto de hospital psiquiátrico. O meu pai e o meu tio resignaram-se ao parecer, e optaram por tentar cuidá-la em casa. Da manifestação dos primeiros sinais de doença mental até morrer, decorreram 11 anos, ensopados numa grande incapacidade de resposta familiar, por impreparação para lidar com um quadro que envolvia episódios de violência contra os cuidadores, que éramos todos nós, recusas em se alimentar, fazer a higiene, tomar os medicamentos e tentativas de fuga, alternados com episódios de delírio humorístico que nos faziam rir, ou explosões de sofrimento emocional, que nos entristeciam.
Aos poucos, a avó encarregou-se de decorar a casa ao estilo de um manicómio. Foi partindo, deitando fora, distribuindo pertences pelos vizinhos, rejeitando ser seu tudo o que tinha acumulado na vida. Pactuámos com a frugalidade imposta, por se revelar mais segura para ela e para nós próprios. Um ambiente minimalista reduzia as probabilidades de se magoar, ou de arremeter contra nós. Cheguei a ter os braços crivados de arranhões e dentadas quando me arrisquei a imobiliza-la. A doença, indecente, tirava-lhe o tino, mas reforçava-lhe a força, propulsionada por rompantes de fúria. Só com o avançar da idade foi perdendo vigor.
Enquanto prosseguia no delírio, sem a medicina nos ajudar a entender a violência da degradação cerebral, sentíamos necessidade de encontrar uma razão. E encontrámos. A resposta estava nas vestes negras que durante anos lhe cobriram o corpo, e que agora se recusava a usar. A avó vivia carregada de luto. O preto da roupa reflectia o negrume interior, que não era causado pela viuvez. Em boa verdade enviuvar não lhe causou especial dor. A avó e o avô apenas coabitavam, procurando cruzar-se o menos possível, porque viviam sob o signo da ostensividade conjugal. Mas isso não importa. O que a partiu ao meio e a deixou metade viva, metade morta, foi a perda do filho mais novo. O tio Zeca foi-lhe arrancado tragicamente dos braços aos 26 anos por um acidental disparo auto infligido num fatídico dia de caça.
Não tenho memória desse infortúnio. Teria pouco mais de um ano quando a tragédia ocorreu e só conheci o rosto do meu tio num retrato. Do mesmo modo não recordo o segundo horror que se abateu sobre a vida dilacerada da minha avó. A irmã, que tinha mudado de sítio e casa para a vir amparar no desgosto, foi barbaramente assassinada pelo marido. Um feito dantesco que fragmentou a metade viva da minha avó. Retalhada por dentro, sobrevivia. Mais tarde, sem esperar, viu-se “forçada” a partir para Lisboa em auxílio do filho do meio, meu tio, recentemente divorciado, mas obstinado em ficar com a custódia da filha de 7 anos. A avó assumiu o encargo de cuidar do filho e da neta, até começar a dar mostras de uma abundante desorganização mental. Voltou! Para nós e para um novo mundo imaginado.
Os episódios negros dilacerantes sucederam-se a outras trapaças da vida, como assistir ao desaparecimento gradual da família mais próxima e ver partir um filho para a guerra.
Pese a tanta adversidade a avó Claudina foi uma mulher com tónus. Aguentou-se com elasticidade e firmeza, até entrar em delírio. Dos meus quatro avós foi a que viveu até mais tarde. Partiu aos 85 anos, tinha eu 25, deixando-me com a estranheza de não ser ninguém para ela. Com o cérebro esfolado por uma espécie de caco de vidro moído, a avó achava-se jovem e dava como absurdo ter netas. Salva-se a ligação que estabelecemos no tempo que mediou a perda do filho e da irmã, até ir para Lisboa. Apesar dos desgostos, cumpriu com o papel de avó. Foi complacente no infortúnio, permissiva e permeável ao disparate das três netas. Ficam as lembranças das idas com ela à missa e dos serões à volta da lareira, com a avó a desfiar as memórias da infância dos filhos, e a dar-me argumentos para justificar os meus disparates perante o meu pai.
A avó Claudina era uma mulher bonita. Alta, de porte elegante e com uns lindos olhos azuis. Também fazia umas deliciosas batatas fritas às rodelas e a melhor sopa de tomate do mundo com palhinhas. Mais tarde fiquei a saber que eram orégãos.
Amanhã é Dia dos Avós, e o meu pensamento vai para ela.