Memória Coletiva, entenda-se, da sociedade portuguesa do século XXI, literada, laica e não laica, que desfruta de um derby de futebol, de ir à praia no Algarve, de assistir a uma tourada em Setembro e de, certamente de forma mais consensual, desfrutar de uma sericaia nos dias mais especiais. Somos isto e muito mais, resultado de uma história que de tão rica e antiga, colocaria inveja a qualquer país de bandeira hasteada nos mais altos fóruns da ONU.
Somos resultado de uma história que nos é dada a conhecer na escola, nas vivências do dia a dia, mas de forma mais crua e vívida, pelos olhos e palavras das gerações mais velhas. Avós, familiares e amigos que, pela idade ou experiência, nos concedem o privilégio de contar o que sabem e o que viveram.
A memória de um povo constrói-se assim de um conjunto de vivências que são transmitidas de geração em geração e que ajudam a dar continuidade a uma cultura em constante evolução. Continuidade a uma memória coletiva, principalmente, como povo e como sociedade intergeracional.
A memória coletiva, enquanto repositório abstrato de memórias de uma comunidade ou grupo de pessoas, é um conceito simples de concretizar quando abordada entre pessoas da mesma geração. A título de exemplo, enquanto o Euro 2004 tem um peso considerável na memória da geração dos anos 60s-70s, que rapidamente consegue detalhar imagens e momentos desse período, o mesmo não assume tamanho peso na geração dos anos 90s, que mais depressa recordam o golo do Éder do que a música “Força” da Nelly Furtado.
Cada geração acaba por ter um sentimento diferente acerca de determinados momentos na história, dependendo da vivência e das experiências individuais e coletivas.
A Segunda Guerra Mundial terminou em 1945, e por isso, qualquer pessoa que tenha assistido ao cessar fogo com 10 anos, terá hoje 90 anos de idade. Todos os menores de 90 anos, no mundo inteiro, conhecem a história e os detalhes daquela que foi a guerra mais mortal da história, através dos registos históricos, dos documentários, das salas de aula e naturalmente pelo relato de quem, hoje praticamente centenário, contou e recontou histórias de um dos periodos mais negros da história recente da humanidade.
Um último jogo de datas, que levará ao tema do presente texto. Cumpre-se este ano, 2024, os 50 anos do 25 de Abril, um marco importante para todos aqueles que celebram a democracia. Fazendo o mesmo exercício que já se fez anteriormente, podemos pensar que todos os portugueses com mais de 10 anos que assistiram à revolução dos cravos, em 1974, ao som de Zeca Afonso e Paulo de Carvalho, terão hoje, pelo menos, 60 anos de idade.
A sociedade portuguesa de idade inferior a 60 anos (cerca de 70% da população segundo os últimos censos) tem uma noção do que foi viver sob o regime do Estado Novo através dos relatos das gerações mais velhas, através de inúmeros registos históricos e de um sistema de ensino que aborda, de forma muito leve, as várias etapas da transição de uma ditadura para a democracia.

Mas apesar de todas as ferramentas de informação que temos, da facilidade de acesso e da digitalização de tudo (e de todos), nada supera a comunicação verbal direta com quem, hoje sexagenário, nos pode contar aquilo que vivenciou nos tempos onde a liberdade não era uma garantia, quando o “Orgulhosamente Sós” e o “Deus, Pátria, Família” eram os motes da nação.
Motes de uma nação fechada sobre si mesma, pobre e elitista, onde apenas 30% da população sabia ler. Uma população controlada e policiada a tempo inteiro, sem direito de reunião, de livre associação ou de manifestação. Sem acesso ao sufrágio universal e com a perseguição política aos opositores do regime, o medo era real e palpável de norte a sul.
Para os portugueses do dia a dia, ausentes de intenções políticas, bastava a suspeita para se tornarem alvo da PIDE e levados para interrogatório e tortura. Ou assim aprendi, com quem este ano completou os redondos 80 anos de idade e comigo almoça quase todos os domingos.
“Um dia estava no café, grávida da tua mãe, e entrou a PIDE à procura de alguém. Nunca tive tanto medo na vida”. Era assim Portugal há pouco mais de 50 anos atrás.
A memória coletiva portuguesa, no que toca à vivência em regime autoritário, extrativo e repressor, tem vindo gradualmente a perder-se, uma obrigação do tempo, é certo, mas também acelerada pelo facto de que a memória particular que os nossos “mais velhos” nos podem passar, tem cada vez menos penetração na juventude.
Não pela falta de um conhecimento geral da história do nosso país, mas sim pela dificuldade em que os jovens se identifiquem ou, na falta de melhor expressão, “sintam as dores”, que para eles, são um abstrato. A censura, a pobreza extrema, a iliteracia e as limitações à liberdade de expressão fazem parte de uma realidade que 70% da população portuguesa já não conheceu diretamente. Por outras palavras, 70% dos portugueses de hoje, nunca viveram privados de direitos e liberdades.
Com as eleições legislativas à porta, multiplicam-se as sondagens, os estudos eleitorais e de opinião. Um dos indicadores que sustenta a ideia da pouca sensibilização das “dores do passado” na juventude parte do facto de que hoje o partido mais escolhido entre os jovens dos 18 aos 23 anos é, precisamente, o partido da extrema direita portuguesa.
Deste lado faço duas breves questões ao leitor:

  • Como se transmite à geração que já nasceu neste século que a liberdade como eles a conhecem não existia há 50 anos? (É altamente provável que os próprios pais já tenham nascido no pós 25 de abril).
  • Como se transmite o sentimento de urgência para com a proteção dos direitos e liberdades que a extrema direita, aqui e lá fora, procura limitar?
    Enquanto português pertencente à geração dos 90s, a quem já o Euro 2004 diz pouco, tenho dificuldade a dar uma resposta clara a estas questões. Concluo sim, que precisamos de contrariar a noção de que o que passou está no passado, e que a liberdade de hoje é imutável.

Olhando para lá do Caia vemos uma Europa a implodir de trincheiras ativas entre o extremismo e a moderação, entre o ser progressista e o ser conservador, entre a paz e a guerra. Relembrando algo já escrito no presente artigo – “A Segunda Guerra Mundial terminou em 1945, e por isso, qualquer pessoa que tenha assistido ao cessar fogo com 10 anos, terá hoje 90 anos de idade.”.
“Se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara”, escreveu Saramago. Não faltam ensaios sobre o que representa a extrema direita, o que é, ao que vem, e quem a popula. Entre a multitude de razões para o seu crescimento, encontra-se esta perda da Memória Coletiva. À medida que o tempo passa, desaparecem os olhos que assistiram em primeira mão às políticas extrativas do século passado.
A fatalidade da passagem do tempo agravada pela dificuldade em transmitir esta mensagem às novas gerações é um problema que exige reflexão e iniciativa da sociedade inteira.
Somos filhos e netos de um passado que para respeitar precisamos de conhecer. Importa refletir sobre o que éramos e o que somos, na certeza de que nada é, ou alguma vez foi, uma garantia.
Se a história tende a repetir-se, então que seja de forma consciente e ponderada, não por consequência de uma profunda e danosa falta de memória.

Bruno Mocinha

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