Foram curiosas as Eleições Legislativas de 10 de março de 2024 para a Assembleia da República Portuguesa.

Escrevo agora, após o período eleitoral em tempo tecnológico, porque não quis ser influencer político e tentei compreender o espírito da campanha eleitoral e as escolhas da população.

Não sei se acompanharam, pelas reportagens televisivas, pelos debates e discursos doscandidatos, mas também nas tradicionais feiras e mercados portugueses que vêm da Idade Média e onde os candidatos andaram.

Foi uma campanha curiosa e interessante.Interessante porque, em democracia, os diversos quadrantes políticos, partidos e candidatos, apresentam as suas ideias e visões do mundo e as pessoas, eleitores, decidem livremente quem querem apoiar. E foi curiosa porque no ano 2024 não esperava ouvir tantas referências ao passado, à noção de tempo e de tradição. Repararam? Refiro-me especificamente à referência abundante dos candidatos e candidatas aos seus avós e ao passado. Um dos exemplos veio do candidato Pedro Nuno Santos que, talvez por ter nascido num meio rural/fora das grandes cidades, para validar a sua situação sócio-económica fez referência ao avô e à sua condição de neto de “sapateiro”. Mesmo que hoje já não viva como tal.

Outra referência no mesmo sentido veio da candidata Mariana Mortágua que, para tratar o assunto das rendas da actualidade, fez referência ao exemplo da avó que supostamente teria sido prejudicada pela lei de 2012. Ambos os discursos foram interessantes na medida em que se basearam e justificam em parte as suas escolhas pela experiência e vida dos seus antepassados, os avós. E demonstram como se mantém enraizada na população a noção de ser filho ou neto de. Que de resto era a noção que em monarquia subjazia à noção de “fidalgo”, que significa literalmente ser filho de/de alguém (importante).

Fiquei admirado porque hoje, ainda mais em Política, parece dar-se pouco valor à noção afectiva e familiar. De herança, dos princípios da tradição, da sucessão (o tal princípio de passagem de avós para netos) que era uma das bases do Direito e da organização e espírito das sociedades antigas que, na História, se designa por L’ Ancien Régime. E que em Portugal vigorou até à Revolução Liberal de 1820-1834.

Ainda que seja usado por netos das classes populares, não deixa de remeter para o conceito de sucessão, a sucessão nas suas famílias. Aparentemente os conceitos de Eleições contemporâneas e Tradição pouco teriam a ver. Mas no fim, como vemos, interligaram-se.

Quando em Política se recusa habitualmente que se considere e se tenha em conta o espírito e códigos da tradição – há vários exemplos, entre os quais a Tauromaquia seja talvez o que hoje se apresenta como mais controverso -, todavia se vem a perceber que a cultura é variada e múltipla e feita de vários substratos que hoje subsistem e podem conviver, como se viu.

Os candidatos de Direita, por seu lado, e também de forma surpreendente, não se aproximaram desse discurso em certo sentido tradicional(ista). Certamente com receito de conotações de classe. Embora caiba aos partidos de Direita um pensamento mais conservador e aparentemente mais próximo destas ideias, a verdade é que preferiram ter apresentações menos “familiares”. O que também se compreende e provavelmente a credibiliza junto, principalmente, de novos públicos que poderão pensar menos nas tradições e em tudo o que remete para o que “vem de trás e permanece”.

É precisamenteeste o conceito de Património – etimologia latina de pater, o que o pai transmite ao filho -, seja ele histórico, cultural ou arquitectónico (cf. o nosso artigo «Proteger o Património é valorizar a Cultura», consultável Proteger o Património é valorizar a Cultura (patrimonio.pt) ). Património que em boa medida está a ser redescoberto na actualidade (cf. Maria Cardeira da Silva, «Património à Solta», da Fundação Francisco Manuel dos Santos).

Na sociedade contemporânea é costume lidar-se mal e com afastamento em relação às relações históricas, mesmo quando são úteis para compreender o mundo de hoje. Os candidatos de Esquerda fizeram por isso muito bem, ainda que apenas na época eleitoral, em referir publicamente os seus avós. Pois significam geralmente boas memórias.

Tiago Matias, professor, investigador em História Local e Etnografia, diplomado em Estudos Europeus pela Faculdade de Letras de Lisboa

Carregar mais artigos relacionados
Carregar mais artigos por Redacção
Carregar mais artigos em Destaque Principal

Veja também

Avó leva neta sem autorização do hospital alentejano, é detida e bebé devolvida

Uma avó retirou sem autorização a neta do hospital de Beja, sexta-feira, mas foi encontrad…