Anteriormente, debruçamo-nos sobre dois episódios que marcaram o final do ano velho, pois então vejamos agora o que marcou o início do novo ano. Uma vez mais, fixar-nos-emos num tema que, como seria de esperar, tem dividido esquerda e direita, ao longo das últimas décadas, e que toca, também ele, em questões relacionadas com dignidade humana: Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG).

A IVG é legal em Portugal, desde 2007, e tanto pode ser realizada em estabelecimentos de saúde públicos ou privados, mediante a existência dessa especialização nessa mesma unidade. Trata-se de um procedimento um tanto burocrático e ao mesmo tempo com umas nuances bastante específicas. No Sistema Nacional de Saúde, podemos verificar que este processo se divide em três fases: numa primeira, há uma consulta que tem como intuito explicar o processo de interrupção e realizar uma ecografia para datar a gravidez; após isso, de acordo com o que está comtemplado por lei, há um período de reflexão obrigatório, cuja duração é de 3 dias no mínimo; já na consulta seguinte, o médico responsável procede, então, à interrupção da gravidez, que pode ser realizada através de medicação ou cirurgia; e, finalmente, caso se proceda ao método medicamentoso, uma consulta 15 dias após a toma permitirá aferir e avaliar o estado do processo.

No entanto, mais do que o processo em si ser questionado por alguns partidos e movimentos, algumas críticas recaem sobre a prestação de determinadas informações ou sobre o tempo em que a IGV deve ser realizada. De acordo com o ponto 1 do artigo 142.º do Código Penal, a interrupção da gravidez não é punível: quando realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez, se existir perigo de morte ou lesão física ou psíquica agravada para a mulher grávida; quando realizada nas primeiras 24 semanas de gestação, se houver seguros motivos que prevejam uma malformação congénita ou doença grave, incurável, de que o nascituro venha a sofrer; quando realizada nas primeiras 16 semanas, caso a gravidez tenha resultado de um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da mulher grávida; por fim, caso a interrupção seja realizada por opção da mulher, só não será punível por lei se realizada nas primeiras 10 semanas de gravidez.

Por outro lado, no artigo 6.º da Lei n.º 16/2007 de 17 de abril, publicada em Diário da República, está consagrado e assegurado, a qualquer profissional de saúde, “o direito à objeção de consciência relativamente a quaisquer actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez”, ou seja, poderão recusar-se a esta mesma prática caso a mesma entre em conflito com os seus princípios éticos, morais, religiosos, entre outros. No entanto, caso invoquem este direito, estes profissionais não poderão participar na consulta em que se faculta à mulher grávida toda e qualquer informação sobre o procedimento.

Relativamente a estas questões, no passado dia 10 de janeiro de 2025, estiveram em votação na Assembleia da República dez propostas de alteração à lei da interrupção voluntária da gravidez. À esquerda, o Partido Socialista, responsável pelo agendamento desde debate, e o Partido Comunista Português propunham o alargamento do prazo para as 12 semanas, relativamente ao procedimento feito por opção livre da grávida, ao passo que o Bloco de Esquerda e o Livre sugeriam uma extensão que alcançasse as 14 semanas; ambos defendiam, simultaneamente, o fim do período de reflexão e uma maior especificação da lei sobre a objeção de consciência. No lado direito do plenário, o CDS defendeu a presença dos médicos objetores de consciência na consulta que antecede a interrupção e, finalmente, o Chega apresentou a possibilidade de realizar um exame prévio que permitisse à grávida ver o feto e escutar o seu batimento cardíaco. O Partido Social Democrata e a Iniciativa Liberal foram os únicos partidos a não propor qualquer tipo de alteração. No final, todos os projetos de lei foram reprovados, mantendo-se a mesma inalterada.

O meu intuito com este artigo não seria, portanto, defender ou filiar-me à proposta de um determinado partido, porque creio que o debate não é feito de maneira propriamente justa. Com isto não pretendo dizer que não deveria ser discutido, é óbvio que é de extrema importância que haja uma legislação sobre este tema, para que possa ser realizado de forma segura e digna, no entanto, o que me provoca uma certa inquietação é que os protagonistas deste debate continuem a ser homens cisgénero, a maioria com mais de 45 anos e religiosos e/ou conservadores. E com isto não digo que se retirem as pessoas entendidas no tópico do debate, já que o mesmo envolve questões científicas; mas onde fica a opinião das pessoas que têm um útero e que deveriam ter algo a dizer sobre o assunto, uma vez que isto as afetará somente a elas? A interrupção voluntária da gravidez não é somente uma questão de saúde pública, é simultaneamente sobre direitos humanos e sobre respeitar e conservar a dignidade de qualquer pessoa que pode gerar um feto. Porque tem a prática da interrupção da gravidez, por opção da grávida, estar cingida às 10 semanas quando na maioria dos países da União Europeia está legislada que pode ser feita nas primeiras 12 (ou mais) semanas? E aliás, o Código Penal prevê que se possa fazer num período mais tardio mediante as condições anteriormente citadas, então se for por libre opção, porque tem de ser menos? Porque é que se continua, muitas vezes, a argumentar que se está a matar uma vida, quando muitos estudos já comprovaram que o feto só deixa de ser um “aglomerado de células” algures no segundo trimestre de gestão (até esta questão divide a comunidade científica)?

No fundo, esta temática não é levada de ânimo leve, contudo creio que há ainda imensos mitos que são necessários desmistificar. Em primeiro lugar, a ideia de que o aborto é utilizado como método contracetivo, quando os números na verdade mostram que a maioria das mulheres que recorreram à IVG o fizeram pela primeira vez. Concomitantemente, há uma forte associação que se estabelece entre este procedimento e a prática de relações sexuais casuais e sem recurso a contracetivos. Por um lado, há que ter em conta que há abortos que são realizados por mulheres que estão numa relação estável e que, também, nenhum método contracetivo tem uma taxa de eficiência de 100%; por outro lado, mesmo que a gravidez advenha de uma relação casual ou que se tenha descartado a utilização do contracetivo, há que obrigar uma mulher a levar adiante uma gravidez indesejada e obrigá-la a ser mãe contra a sua vontade? Já para não falar de que estamos a ignorar o contexto em que esta mesma mulher se encontra; será que quer ou está pronta para ser mãe? Tem condições psicológicas e económicas para garantir estabilidade à criança que aí vem?

Trata-se, por isso, de considerar o aborto, tal como outro qualquer procedimento de assistência sanitária, um direito de qualquer pessoa que tenha um útero. Tornando-o, por um lado, de acesso igualitário, de forma a não promover qualquer tipo de desigualdade; por outro, garantir que é praticado de forma segura, a fim de evitar qualquer tipo de riscos e consequências nefastas; e, finalmente, discutido sem qualquer tipo de tabus, com o intuito de eliminar todo e qualquer tipo de preconceitos associados.

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