A Alda é importante para mim. Trata-me dos fios de cabelo com uma eficiência dramática. Não estamos juntas mais que um par de vezes no ano, porque no que toca a matéria capilar, sou muito auto suficiente. Anos a fio de  idas semanais  ao cabeleireiro, resultaram num exercício de captação, e vendo, aprendi como se domina a rebeldia de um cabelo em absoluta sintonia como o restante do meu ser.

Sou grata aos meus olhos e ao mundo da cosmética que se juntaram numa parceria e me resgataram do hábito de ficar a vociferar pelo dinheiro mal gasto no salão. Era raro sair de lá contente com o resultado, que passou a ser manifestamente  inferior em  qualidade ao que o que eu própria passei a  fazer,  à conta de observar e melhorar . Estou em condições de aqui garantir que os nossos olhos, quando se empenham, e as nossas mãos acompanham, fecham salões de cabeleireiro. Por isso, exceptuando a execução de trabalhos de complexidade técnica, como pintar o cabelo às riscas, raramente me apanham no salão.

Foi numa desta idas esparsas ao cabeleiro, que a minha Alda semestral me deu a saber que às vezes o amor torna-se numa deficiência progressiva, causada por vagas distâncias e grandes medos. Medos ensurdecedores que nos levam a situações que não devíamos consentir, porque nos fazem parecer que vivemos bem com elas, quando é ao contrário: rasgam-nos por dentro, encolhem-nos e deixam-nos atolados em impotências.

Naquele dia, enquanto me pincelava a cabeça, o ventre da Alda iluminou-se com toque do telemóvel que  vibrou no bolso central da bata. Alda ignorou, e não atendeu. Só que do outro lado da linha, alguém insistia. Perante a repetição, olhou-me através do espelho, e pediu desculpa, anunciando que teria que atender. Lancei-lhe um olhar complacente e um sorriso. E depois não tive como não ouvir a conversa. “Não Armando, acabou-se. Não contas mais comigo.  Já te disse que não volto a dar o meu nome para mais empréstimos. Já são quantos? Há quantos anos andas nisto? São uns atrás dos outros. Desta vez não. Basta Armando!” E desligou. Dez segundos depois o telemóvel voltava a tocar. Eu sem saber o que dizer, a sentir-me deseducada nos gestos, a acompanhar aquele descarrilamento, até que os meus olhos bateram de frente com os dela, e vi que parecia reivindicar o direito de dar a saber que vivia asfixiada, atolada em dívidas que não eram suas, submetida a impotências e a um agravar de problemas, sem fim à vista.  O telefone continuava a tocar. Com uma força interior que lhe saía pelo pincel a espalhar tinta no meu cabelo e a dobrar as pratas, Alda manteve-se inflexível e não voltou a atender.

Eu seguia-lhe os gestos. Observei-lhe o cabelo descuidado, as mãos desprotegidas, sem luvas, submetidas à agressividade do amoníaco, o rosto vincado, abandonada por si própria. Pensei que idade teria, talvez a mesma que eu… Um sentimento de cumplicidade invadiu-me. Apeteceu-me abraçá-la. Ainda mais quando lhe vi um tremor no queixo, e um brilho húmido no olhar.  Raios parta o Armando, pensei, quem pensa que é para deixar Alda neste desespero, agastada, desarranjada, e profundamente infeliz?   Arrependi-me imediatamente. Pensei no aperto do Armando. Para que quereria ele mais um empréstimo? Que dificuldades teria? Iria desistir, ou pior, como trataria Alda depois dela se atrever a dizer: “Basta Armando!?”

Aos poucos vi Alda serenar. Tomou a iniciativa de iniciar o diálogo comigo. Pediu desculpa e terminou o trabalho com um sorriso amável.

Senti-lhe alívio. Senti-me orgulhosa dela. E veio-me à memória um dito que li em qualquer lado que dizia: “Se tem que fazer, faça. A dor que dói também é a que passa”.

Aquela demonstração de coragem é um exemplo que não podia guardar só para mim. Especialmente hoje, que é Dia da Mulher!

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