Em Campo Maior rezam a outro deus. Em cada canto deste pequeno município português, situado a escassos 10 quilómetros da fronteira com Espanha, há alguma referência – seja em forma de gravura, escultura ou mural – à figura de Rui Nabeiro. Falecido há já três anos, o seu legado continua bem vivo: a Delta Cafés, uma marca que transcendeu o mundo empresarial para se tornar um símbolo de identidade nacional em Portugal.

Em Campo Maior, todos lhe prestam homenagem – e não é para menos. Dos 8.000 habitantes que a vila tem, cerca de 4.000 trabalham para a família Nabeiro. A Delta Cafés, especializada na torrefacção de café, factura hoje mais de 400 milhões de euros e vende em mais de 40 países. A empresa nasceu em 1961, mas a sua origem remonta aos anos do pós-guerra espanhol, quando os Nabeiro, tal como boa parte da população local, iniciaram a sua actividade no contrabando de café com Espanha – café que vinha das colónias portuguesas em África.

Desde a morte do “fundador”, como ainda hoje é chamado com respeito na vila, foi o neto, Rui Miguel Nabeiro, quem tomou as rédeas da empresa. Guiado pela ambição e pelos valores transmitidos pelo avô, propôs-se levar a Delta ao selecto grupo das dez marcas de café mais importantes do mundo.

Foram afectados pelo apagão?

Felizmente, temos geradores que mantiveram a actividade nas nossas fábricas quando faltou a luz e também dispomos de painéis solares. No entanto, o maior impacto foi humano: os pais não conseguiam contactar os filhos nem as escolas, o que evidenciou a nossa grande dependência da tecnologia.

Ficaram zangados com Espanha…?

[Risos] O pior é que em Portugal a luz voltou bastante mais tarde do que em Espanha. Esperamos, como é lógico, que haja responsáveis.

O que significa para si liderar uma marca com tanto peso e importância em Portugal?

É um orgulho. Estou há mais de 20 anos na empresa, nos quais fui crescendo e assumindo novos desafios, como foi agora liderar a companhia. Mas não é apenas um desafio profissional; tem também uma profunda dimensão emocional. Significa continuar o legado do meu avô, uma figura verdadeiramente extraordinária. Isso acrescenta um nível de exigência maior.

O que acharia o seu avô da Delta actual?

Já passaram três anos desde o seu falecimento e, desde então, a empresa entrou numa nova fase de crescimento, especialmente em mercados como Espanha e França. Também tivemos de nos adaptar aos novos hábitos de consumo, o que nos levou a inovar constantemente nos nossos produtos. Ainda assim, estou certo de que ele se sentiria muito orgulhoso ao ver como continuamos fiéis à sua visão, à sua forma de pensar e aos valores com que construiu esta empresa.

Quais são essas inovações?

A Delta Cafés promove a inovação tanto no canal Horeca como no retalho, com produtos como a Harvest Collection (cafés biológicos) e GoChill (café pronto a beber), além dos Unboring Snacks, uma linha saudável à base de cogumelos. Além disso, todas estas iniciativas surgem de um modelo de inovação aberta, onde qualquer colaborador pode propor ideias.

Como equilibra este lado emocional da família com a gestão empresarial?

Não é difícil, sobretudo partindo da base de que 100% do capital pertence à família e, antes que pergunte, assim continuará a ser. Além disso, a dinâmica que construímos dentro da empresa faz com que todos se sintam realmente responsáveis pelo que acontece aqui. Em momento algum sinto que carrego sozinho a responsabilidade de liderar a empresa. É um trabalho de equipa. Todos os trabalhadores assumem o compromisso de continuar o legado deixado pelo meu avô, e isso é algo que partilhamos profundamente.

O seu avô está muito presente. Há fotografias dele por toda a fábrica. Que aspectos da sua liderança manteve?

Quando somos líderes em Portugal há tantos anos, é fácil cair na comodidade e sentir-se satisfeito com essa posição. Mas há um aspecto que herdámos do meu avô: a ambição. Somos muito ambiciosos, e isso é fundamental. Às vezes pensa-se que a ambição é algo negativo, mas o meu avô sempre dizia que existe uma ambição positiva: uma visão que olha para a frente, que procura construir, crescer e avançar.

Qual é a sua ambição?

O nosso objectivo é claro: queremos estar entre as dez marcas de café mais importantes do mundo nos próximos 20 anos, apoiados na inovação, em aquisições e numa equipa comprometida com os nossos valores. Essa é a visão que guia toda a empresa, e todos estamos completamente focados em alcançá-la.

Nesta corrida para ser dos melhores, como compete a Delta com outros modelos de negócio como a Nestlé ou a Starbucks?

Temos muitas forças para competir. Somos especialistas e líderes no canal Horeca, onde o serviço ao cliente é a nossa grande vantagem. Além disso, a inovação é chave no nosso caminho para o top 10. Por exemplo, nenhuma outra marca conta com uma máquina desenhada por Philippe Starck que prepara o café directamente na chávena, como a nossa. Estamos a implementar várias acções para avançar, conscientes de que este caminho será longo e exigirá também aquisições estratégicas.

Nos últimos anos, temos crescido a dois dígitos, não só em Portugal, mas também em Espanha, onde no ano passado batemos recordes. Hoje facturamos cerca de 65 milhões de euros e estamos presentes em cerca de 15.000 pontos de venda. Também avançamos em mercados como França, Suíça, Luxemburgo, Brasil e Angola, onde temos outra fábrica além da principal em Portugal. Competimos com gigantes do sector, mas a nossa especialização e capacidade de inovação permitem-nos avançar passo a passo para os nossos objectivos globais.

Quando decidiu a Delta dar o salto para outros mercados, como o espanhol?

Na verdade, a nossa relação com Espanha é anterior até à fundação oficial da Delta em Portugal. Estamos em Campo Maior, na fronteira, porque aqui já existia uma tradição com o café. A família do meu avô, antes de fundar a empresa, comercializava café com Espanha, mesmo em tempos difíceis, nos anos do contrabando. Posteriormente, o meu avô trabalhou com o tio numa fábrica local e foi então que decidiu criar a sua própria empresa – e assim nasceu a Delta. A família já vendia café em Espanha sob a marca Camelo. A Delta Espanha existe há 40 anos. Hoje somos líderes em regiões próximas, como a Extremadura e a Andaluzia, e temos 15 delegações espalhadas pelo país: em Madrid, Catalunha, Valência, Sevilha, entre outras. Estamos muito focados no canal Horeca, com presença local e atendimento directo ao cliente, mas também estamos a crescer na grande distribuição, especialmente a partir de Madrid, com o objectivo de nos aproximarmos cada vez mais do consumidor final.

Quando se deu esse grande impulso em Espanha?

Foi a partir da Covid. Desde 2021, justamente quando saímos da pandemia, o nosso crescimento em Espanha acelerou notavelmente e agora estamos num dos nossos melhores momentos neste mercado.

Têm planos para entrar noutros mercados?

Para nos tornarmos uma referência mundial temos de entrar em mais mercados, estamos sempre a analisar novos destinos. Um caso de destaque tem sido a Polónia, onde com as nossas cápsulas atingimos 30% de quota de mercado, quase ao mesmo nível de Portugal, onde temos 35%. Actualmente temos mais de 400.000 máquinas Delta instaladas em lares polacos, o que mostra o enorme potencial desse país, cuja população é quatro vezes maior do que a portuguesa.

E fora da Europa?

Temos vindo a avaliar o mercado norte-americano. Temos uma grande comunidade em cidades como Nova Iorque, que seria um grande apoio para nós, mas a situação actual obrigou-nos a travar um pouco.

O café sofreu um aumento significativo nos últimos anos. Somado ao contexto inflacionário global, como enfrentou a Delta este cenário?

Enfrentámo-lo com muito cuidado, porque o impacto no sector foi realmente forte. As alterações climáticas afectaram gravemente os países produtores: no Brasil, por exemplo, as geadas intensas ou as chuvas excessivas danificaram as plantações. E, sendo responsável por cerca de 50% da produção mundial, qualquer alteração lá tem um efeito imediato e global. No Vietname, principal produtor de café robusta, vivemos também situações semelhantes.

Que medidas tomou a Delta para mitigar o impacto e manter a estabilidade do negócio?

Os preços subiram muito e, o mais preocupante, não voltaram a baixar. Perante este cenário, a nossa estratégia centrou-se em vários eixos. Por um lado, a inovação e o valor acrescentado nos nossos produtos ajudaram-nos a mitigar parte do impacto. Mas, sobretudo, fizemos um grande esforço para ganhar eficiência em todas as áreas: desde a compra até à produção industrial.

Depois da pandemia e do impacto da guerra na Europa – que já tinham gerado uma forte pressão sobre os custos -, agora enfrentamos esta nova subida no preço do café. Trabalhámos para não transferir directamente todo esse aumento para o consumidor. Em vez disso, procurámos optimizar processos, comprar melhor e tornar mais eficiente toda a nossa cadeia de valor. Preocupa-nos especialmente como estes aumentos podem afectar o consumo. Em alguns mercados europeus já se começa a notar uma ligeira retracção. Por isso acreditamos que é essencial manter um equilíbrio: assegurar a sustentabilidade do negócio, continuar a investir e a crescer, mas sem perder de vista o que o consumidor pode suportar. Ainda assim, orgulhamo-nos de ser um dos países que vende café a um preço mais baixo. Temos tentado ter um papel responsável a esse nível e creio que isso também faz parte do nosso compromisso com quem nos escolhe todos os dias.

Comenta que lhe preocupa a possível retracção no consumo de café devido ao aumento dos preços, mas não acha que o café está na moda agora?

Claro que sim. Quando comecei a trabalhar na Delta, há mais de 20 anos, o café tinha uma imagem um pouco negativa, associada a problemas cardíacos. No entanto, nestas duas décadas vimos como muitos estudos científicos demonstraram os benefícios do café para a saúde, sempre com um consumo moderado de cafeína. Creio que superar essa má fama abriu um novo mundo para o café, que cresceu muito em popularidade. Claro que este crescimento também influencia os preços, porque a procura global aumenta todos os anos, mas a oferta nem sempre cresce ao mesmo ritmo, somado aos efeitos das alterações climáticas nas regiões produtoras. Ainda assim, estamos num negócio muito bonito, inovador e dinâmico. A cultura do café está na moda, em parte graças aos baristas, que adicionaram muito valor com novos produtos e novidades. Isso dá uma energia muito positiva ao sector.

Que iniciativas implementaram para reduzir a pegada ambiental da empresa?

A Delta Cafés utiliza energia 100% renovável, maioritariamente de produção própria, e opera com uma frota comercial totalmente eléctrica, o que reduz significativamente a sua pegada ambiental. Além disso, lidera iniciativas sustentáveis como parte do International Coffee Partners, apoiando pequenos produtores com formação e recursos para melhorar o seu rendimento e qualidade. Também impulsiona o projecto Impossible Coffees, com o qual procura cultivar café na Europa, começando nos Açores, onde já colheram um primeiro lote simbólico e planeiam expandir-se nos próximos cinco anos.

Porquê nos Açores?

As condições climáticas dos Açores permitem-no e, com as alterações climáticas, talvez um dia se cultive café em mais partes da Europa. Por agora, os Açores são o nosso laboratório natural para o tornar realidade.

Qual foi o processo?

Começámos há cinco anos nos Açores. Trouxemos especialistas do Brasil, analisámos o terreno e, há pouco, assinámos um acordo com o governo regional para expandir este cultivo. Queremos chegar a ter 500 agricultores a produzir café lá. Já fizemos o lançamento simbólico do primeiro lote – ainda muito pequeno – nas nossas lojas Delta Q, mas é um projecto a longo prazo. Em cinco anos esperamos ter volumes mais significativos.

Têm mais projectos dentro desta linha de “café impossível”?

Estamos também a trabalhar em São Tomé, onde ajudamos a recuperar uma plantação histórica de café que tinha sido abandonada. E um dos projectos que mais nos apaixona é o de sete mulheres agricultoras em Angola, na região de Amboim. Elas produzem um café robusta de altíssima qualidade. Nós demos-lhes visibilidade, apoio técnico e financeiro e lançámos esse café aqui com grande sucesso. Além disso, uma parte das receitas das vendas vai directamente para elas: já lhes entregámos mais de 10.000 euros adicionais e continuamos a comunicar tudo com total transparência.

Quais são as previsões para este exercício?

Há que ver como o ano avança, porque o preço do café continua a subir e isso representa uma ameaça para os nossos resultados finais. No entanto, estamos confiantes, porque se continuarmos a crescer em vendas, ao subir os preços, também aumentará a facturação, pelo que poderemos chegar a crescer 20%. Isso sendo muito optimistas, mas o que é quase certo é que encerremos o exercício com um crescimento na ordem dos 16% a nível global, semelhante ao do ano passado.

E em Espanha?

Em Espanha, esperamos crescer cerca de 17%, superando a média do grupo. Espanha é hoje o principal motor de crescimento para a Delta, com uma equipa muito profissional e capacitada que entende perfeitamente o mercado. Estamos a crescer muito bem tanto na distribuição como no Horeca, aumentando o número de clientes e a facturação. Por isso espero que Espanha mantenha esse ritmo de crescimento de 17% este ano. Espanha é muito, muito importante para nós. A nossa ambição é sermos cada vez mais uma empresa ibérica e menos apenas portuguesa. Trabalhamos muito bem em Portugal, mas o crescimento tão positivo que estamos a ter em Espanha está-nos a consolidar como o grande player de cafés na Península Ibérica. Hoje já temos a maior fábrica da Península e, possivelmente, somos a maior empresa desta região.

Qual a visão para a Delta nos próximos cinco anos?

A cultura do café está viva e em expansão e a Delta quer ser parte fundamental dessa história, sempre com a mesma paixão, ambição e compromisso que têm caracterizado esta família desde os seus inícios.

Entrevista de Gabriela Galarza no “El Mundo”
in: https://www.elmundo.es/economia/empresas/2025/05/24/682eee23e9cf4a2f188b456d.html

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