Se no ano passado escrevia sobre a implementação de uma nova disciplina no plano curricular e parabenizava a iniciativa por incluir novos temas e necessários, este ano compete-me expressar a minha mais sentida indignação face às reformas que o governo apresentou na pasta da Educação, Ciência e Inovação.

Antes de iniciar esta crónica, gostaria de, desde já, fazer a ressalva de que não tenho qualquer intenção em perseguir o governo de Montenegro e tornar esta rubrica uma exposição e crítica das suas medidas. No entanto, sou incapaz de ficar indiferente perante a regressão a que estamos a assistir no que toca à educação dos jovens, aos direitos dos trabalhadores e, como referi no artigo passado, aos direitos humanos.

Recentemente, o novo pacote de medidas apresentado pelo Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MEIC) inclui alterações ao conteúdo da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, assim como uma reforma do próprio ministério, alegando “menos burocracia, mais coordenação e melhor gestão pública”.

O primeiro-ministro português já havia anunciado a necessidade de rever o currículo da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento de maneira a “libertá-la de amarras ideológicas”, tendo também prometido que nenhum conteúdo ia ser deixado para trás. Falamos de um programa que estava dividido em 17 domínios, cujo leccionamento era obrigatório ou facultativo conforme o grupo a que pertenciam. O primeiro grupo, que contemplava temas para todos os níveis e ciclos de escolaridade, incluía temas como Direitos Humanos, Igualdade de Género, Interculturalidade, Desenvolvimento Sustentável, Educação Ambiental e Saúde. A serem lecionados em pelo menos dois ciclos do ensino básico tínhamos tópicos como Sexualidade, Media, Instituições e Participação Democrática, Literacia Financeira e Educação para o Consumo, Segurança Rodoviária e Risco. Já Bem-estar Animal, Empreendedorismo, Mundo do Trabalho, Segurança, Defesa e Paz, e Voluntariado estavam estipulados como de aplicação opcional em qualquer ano de escolaridade. Ainda assim, e sendo este executivo perito em reduções (para o que interessa), Fernando Alexandre, Ministro da Educação, Ciência e Inovação, declarou ser necessário corrigir o que estava a funcionar mal e desregulado até aos dias de hoje, assim como definir um modelo que fosse comum a todas as escolas. Dessa forma, optou-se então por reduzir os 17 domínios anteriormente apresentados em 8 dimensões obrigatórias, sendo que 4 delas deverão ser aplicadas a todos os anos de escolaridade: Direitos Humanos, Democracia e Instituições Políticas, Desenvolvimento Sustentável, e
Literacia Financeira e Empreendedorismo. São de gestão flexível os domínios Saúde, Media, Risco e Segurança Rodoviária, e Pluralismo e Diversidade Cultural. Logo, é muito mais importante que os jovens saibam investir, interpretar os valores da bolsa e construir uma empresa, do que saber tratar fake news, por exemplo, ou até mesmo conhecer a diversidade e a si próprios.

Constatamos, portanto, que deste currículo foram retirados Sexualidade e Igualdade de Género, especificamente, porque a promessa é a de que estes conteúdos estão agora inseridos dentro de outros domínios, e que Interculturalidade continua a ser obrigatório, porém de gestão flexível e com um outro nome. Na conferência que deu no mês passado, o ministro referiu inclusive que estas alterações tinham também em conta queixas que alguns encarregados de educação apresentaram, no seguimento de terem
tido conhecimento de temas e presença de instituições com os quais não estavam de acordo. Gostaria, por isso, de saber de que ferramentas e dados dispõem os encarregados de educação e o Ministério da Educação para exigirem estas alterações.

Todos os números e estudos publicados por organismos de saúde pública, seja a nível nacional ou internacional, revelam que a ministração de Educação Sexual potencia a prática de relações sexuais tardias, protegidas e conscientes. Temas relacionados com sexualidade e igualdade de género permitem criar jovens educados, conscientes, assertivos, que sabem respeitar o próximo e que tomam decisões ponderadas. Falta compreender aos mais conservadores que estes temas não são ideológicos nem doutrinários, estes temas não obrigam ninguém a ser homossexual ou transsexual, como também não faz com que os jovens vão correr ter relações sexuais; o que estes momentos em sala de aula criam é precisamente um espaço de aceitação, compreensão e respeito pelo próximo, em que se aprende a ver a realidade tal como ela é na sua diversidade e pluralidade, seja de orientações sexuais, culturas, identidade de género, entre outros.

Importa frisar que, ao contrário do que faz a fação mais à direita, o meu objetivo aqui não é demonizar os conservadores. As suas posições e perspetivas são válidas, como se espera num bom país democrático em que vivemos, contudo, a sua liberdade não deve começar onde a do outro termina; por muito que não se identifiquem com algumas ideias, isso não implica que tenham de as impor aos outros ou que os impeçam de ser tal como são. A verdade é que existem pessoas que não são heterossexuais, pessoas que não são cisgénero, pessoas que não são brancas, e está tudo bem com isso.

Somos todos feitos da mesma matéria, constituídos pelo mesmo tipo de células, detentores de razão e emoção. Constitucionalmente temos também os mesmos direitos e deveres, ninguém quer tirar nada a ninguém, nem ser ou ter mais que ninguém. Por isso mesmo, uma disciplina como a de Cidadania é fundamental nas escolas, para que desde jovens aprendem a respeitar, a ouvir, a compreender, também para que saibam tratar informação e, acima de tudo, para que se conhecem a eles mesmos. E esta questão torna-se precisamente problemática quando se crê que este tipo de temas se deve aprender e ser falados somente em casa, no seio familiar, pelo simples razão de, por um lado, muitos pais serem mais conservadores e, por isso, não abordam este tipo de temas com os filhos, seja por vergonha ou por não aceitarem, ou, por outro lado, recordemos os números da Polícia Judiciária que revelaram que, em 2023, 51% dos casos de crimes sexuais foram cometidos no seio da família. O facto de estas aulas consciencializarem os jovens para os mais diversos problemas, faz com que se sintam incluídos, já que as
taxas de suicídio em pessoas LGBT continuam a ser alarmantes, e faz com que se possam identificar comportamentos abusivos com maior facilidade. Com isto não digo que os alunos e as famílias não devam contribuir com o seu parecer, claro que é importante que as suas contribuições estejam inseridas neste programa, porém todas estas opiniões têm fundamentação científica? Estamos a falar de contribuições construtivas ou destrutivas?

Para além desta alteração, o governo também já colocou em marcha a revisão das Aprendizagens Essenciais para todos os anos de escolaridades, prevendo-se que até ao final do ano este processo esteja concluído. Todavia, não só de alterações de conteúdos programáticos é feita a reforma na educação que o executivo de Montenegro está a realizar, já que fomos noticiados também acerca de extinção de algumas entidades do sistema educativo, tais como a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) que
agora se funde com a Agência Nacional de Investigação (ANI) e cria-se a Agência para a Investigação e Inovação. Suprimem-se também organismos como o IAVE, o PNL, a DGEstE, a DGAE e a DGES, que se fundirão com outros, formando assim entidades que incluirão dois ou mais destes. Alguns especialistas da área mostraram-se surpreendidos com este anúncio, exigindo alguns deles esclarecimentos adicionais por parte do MEIC. O que mais questões levantou foi a extinção da FCT, justamente pelo legado que esta fundação tem no desenvolvimento científico e tecnológico; estamos a falar de uma entidade que
atribuía várias bolsas de investigação e que estava envolvida em múltiplos projetos, e cujo futuro permanece uma incógnita. Há uns dias, o Presidente da República prometeu vetar o decreto por dúvidas importantes que fossem levantadas e que não fossem repensadas pelo executivo, uma vez que afirma que de nada serve extinguir só por extinguir, e recorda o que aconteceu aquando da extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).

“A educação é a arma mais poderosa que podemos usar para mudar o mundo”, assim afirmou Nelson Mandela, e esta citação traduz aquilo que esta crónica pretendeu defender: as possibilidades de transformação e de avance social que a educação possibilita (perdoem-me a redundância). Uma vez mais, concluímos que o poder executivo está a ser utilizado para resolver problemas de menor prioridade; já referi a imigração, agora a educação, em breve o trabalho e as finanças, porque claramente não podemos dizer que a ordem dos trabalhos é rigorosa quando o governo não propõe medidas concretas para combater a crise da habitação e da saúde, essas sim prioritárias e altamente problemáticas, que colocam os direitos fundamentais dos cidadãos portugueses em causa. Ter uma geração de jovens educados, conscientes do mundo ao seu redor, conscientes de si mesmos, que têm ao dispor todas as ferramentas e conhecimentos básicos e necessários, não só fará deles melhores alunos, melhores profissionais, melhores cidadãos, como também melhores filhos, melhores pais e melhores seres humanos.

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