Desde final de 2019 que a Austrália está a ser fustigada por devastadores fogos. Os incêndios já consumiram uma área maior que a de Portugal, provocaram até à data em que escrevo estas linhas, 12 de Janeiro, 28 mortos e  destruíram perto de 2000 casas. Além de toda esta calamidade, vários são os jornais e canais de televisão que falam num enorme desastre ambiental, uma vez que imensas espécies (coalas e cangurus são os mais falados) estão a morrer e perder o seu habitat.
Mas quão grande é o impacto destes incêndios na vida selvagem e ecossistemas australianos?
Gostaria de abordar esta questão de uma perspectiva global. Ou seja, gostaria de explicar ao leitor o porquê, do ponto de vista da biodiversidade, de as consequências destes incêndios serem maiores na Austrália do que seriam se tudo isto estivesse a ocorrer, por exemplo, em França, na Holanda ou no Canadá.
Em primeiro lugar, é necessário explicar o seguinte: em ecologia existe um termo denominado “hotspots de biodiversidade”. Um hotspot, para abreviar, é uma zona onde pelo menos 0,5% das plantas vasculares (plantas com vasos condutores, excluem-se por exemplo os musgos) desse local sejam únicas no mundo, e tenha perdido pelo menos 70% da sua vegetação original. Ou seja, é uma área com uma enorme riqueza natural e altamente ameaçada. Estas áreas ocupam menos de 3% de toda a superfície terrestre mas nelas existem 44% de todas as plantas e 33% de todos os mamíferos, aves, répteis e anfíbios do mundo. Existem actualmente 36 áreas denominadas hotspots, duas das quais se encontram precisamente na Austrália.
Além disso, a Austrália tem uma outra característica importante que amplifica o valor da sua biodiversidade: é uma ilha. As ilhas caro leitor, são para os ecologistas e biólogos um verdadeiro laboratório vivo. Devido ao seu isolamento natural, as ilhas apresentam normalmente espécies únicas. A Austrália, é uma das ilhas com mais espécies únicas, ou endémicas para usar o termo correcto. É onde se encontram grande parte das espécies de marsupiais, como os cangurus e os coalas, e de monotremados, mamíferos de aspecto primitivo que põe ovos de que são exemplo os curiosos ornitorrincos. Também entre os répteis a Austrália tem uma “coleção” única, sendo o lugar do mundo com mais espécies de serpentes venenosas. Em números redondos, 83% dos mamíferos, 89% dos répteis, 90% dos peixes e dos insetos e 93% dos anfíbios que vivem na Austrália, originaram-se lá e só lá são encontrados, ou seja são endémicos.
Este país apresenta também uma coleção única de plantas. Entre Orquídeas, Acácias e Eucaliptos figuram também grupos que remontam ao tempo dos dinossauros como as Cycas e as Xanthorrhoeas ou também como o Pinheiro de Wollemi que, apesar do nome, não é um verdadeiro pinheiro.
A Austrália é também um dos últimos locais onde podemos encontrar o tipo de vegetação característico das florestas de Gondwana, o super-continente que há cerca de 300 milhões de anos atrás englobava a ilha a África, América do Sul, Índia e Antártida. Como consequência do seu isolamento durante milhões de anos as “novas” ilhas da Austrália, Nova Zelândia e Nova Caledónia, são ainda hoje um dos últimos redutos dessas florestas primitivas.
A importância da História Natural do país dos Cangurus e da sua actual biodiversidade são, pelas razões que acima apresentei, únicas e insubstituíveis, além do mais a simples perda de tal diversidade representa por si só uma tragédia se considerarmos o valor intrínseco de cada ser vivo. A perda de habitats e espécies (plantas, animais e não só) representa um duro golpe para a conservação e para o mundo natural no seu todo.
NOTA: Muitas vezes as fronteiras dos países não podem ser tidas em conta quando se estuda o mundo natural. Muitas espécies não estão circunscritas a um país mas sim a um habitat ou às chamadas regiões biogeográficas. Austrália, Nova Zelândia, Nova Caledónia e outras ilhas fazem todas parte da Região Australiana. Por isso chamo a atenção do leitor que algumas espécies/grupos de animais e plantas referidas como endémicas da Austrália podem não ser endémicas da Austrália (país) mas sim como endémicas da Austrália (região biogeográfica) e por isso presente nos restantes países dessa mesma região.

Investigador em biologia evolutiva na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

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