Há um delicioso debate sobre a Inquisição passado há quase vinte anos na RTP entre o saudoso padre João Seabra e o historiador Jorge Martins e que está disponível no Youtube (escrevendo “João Seabra” e “Inquisição” aparece logo). Às extrapolações demagógicas do professor Jorge Martins, o padre João Seabra responde no temperamento que lhe era característico, prestando um serviço à verdade histórica. Dá-nos assim o devido contexto para entender a Inquisição, na época em que se insere, nas circunstâncias políticas de uma Europa então fraccionada por religiões de estado depois da Reforma e da Contra-Reforma, e no âmbito de uma mentalidade jurídica que era comum nos tribunais civis e religiosos, ainda que a determinação da medida das penas no caso eclesiástico fosse muito menos dura do que no poder temporal. Sem esta contextualização, ficaríamos a pensar que o Santo Ofício era uma organização suis generis, única no seu panorama contemporâneo, de uma violência sem igual para os padrões da época e que não encontrava em nenhumas outras instituições judiciárias estatais ou religiosas de outros países quaisquer semelhanças. Algo parecido com “The Spanish Inquisition” do famoso sketch dos Monty Python, com cardeais maquiavélicos cheios de instrumentos de tortura por debaixo das saias a irromper nas casas dos simples. É de facto uma visão tentadora, fruto de séculos de propaganda anticatólica nos meios protestantes e iluministas e que por aqui se difundiu em maior escala com o advento das perseguições religiosas na Primeira República. Vale-nos por isso o padre Seabra a levar para o âmbito científico aquilo que outros teimam sempre em puxar para o lado sensacionalista.
Por isso, é com alguma reserva que vejo agora o mesmo professor Jorge Martins como responsável pelo projecto de museologia da Casa da Inquisição de Castelo de Vide, como avançou o Linhas de Elvas na semana passada. Porque, sem se dar o panorama em que se insere a Inquisição em Portugal entre os séculos XVI e XIX, é obvio que o visitante que chega e se vê dentro de uma casa dos horrores, à qual não falta a representação de um enforcamento à escala real, vai pensar que os inquisidores mandavam pessoas para a fogueira e para a forca com a mesma frequência com que almoçavam. E aligeirar um tema tão sério como este não é admissível numa historiografia esclarecida. Um espaço museológico interactivo deve pôr as pessoas a pensar. Não lhes deve dizer o que pensar, com base numa perspectiva enviesada e parcial da realidade.
Mas estamos numa época de pensamento único, o objectivo é precisamente que as pessoas não pensem por si próprias, mas sim que pensem de acordo com o que a sociedade determina. Um homem já não é um homem por evidência científica. Um homem é um homem se a sociedade disser que o é. E se disser que é uma mulher, ou uma lampreia, ou um alperce, ai de quem diga o contrário! A Inquisição não é, por isso, uma entidade do passado – renasceu com o fenómeno da cultura “woke”. O politicamente correcto é o motor de todas as novas verdades e criou consigo um sistema de delação, censura e punição tão mais eficaz e sofisticado que faria inveja ao próprio Torquemada. Li há dias que a mais recente vítima do revisionismo literário foi Agatha Christie. A sua editora inglesa anunciou que irá rever (leia-se, censurar) todas as suas obras à luz das sensibilidades actuais, tornando os textos mais inclusivos e inócuos. Referências a povos indígenas e à apreciação que deles fazem as personagens britânicas – o “homem branco”, como não podia deixar de ser – são apenas alguns exemplos do que deve ser “revisto”. Imagino que os próprios crimes desses policiais merecessem também uma revisão, não vá algum morto ficar ofendido com as deduções de Poirot e Miss Marple. Com o intuito de não ofender pessoa nenhuma, acho que se faz precisamente o contrário: ofende-se toda a gente, tomando-nos por imbecis.
A estupidez humana é em todos os tempos apreciada com enorme fascínio, mas penso que nesta época atingiu o seu píncaro. Depois do homem-mulher-lampreia-alperce e das cirurgias linguísticas às palavras que machucam, é preciso um esforço criativo muito grande para descobrir algo mais absurdo. Daqui a duzentos anos também vão construir uma Casa da Inquisição Contemporânea que perpetuará em figuras de cera os ataques sofridos pelos livres-pensadores em 2023. Eu ofereço-me para modelo, já que não me devem aceitar no Madame Tussauds e assim sempre fico imortalizado em público. Contando que até lá não me transforme em alperce.
Artigo de Opinião publicado originalmente na edição impressa do jornal Linhas de Elvas nº 3714 de 30 de Março de 2023