Este fim-de-semana tive de deixar o computador no escritório para manutenção. Talvez pareça
estranho para muitos (para mim ainda o é), mas tenho por hábito trazê-lo para casa todas as
noites, não vá algum tema urgente ou cliente nervoso exigirem resposta imediata a horas tardias.
Por isso, a notícia de ter de deixar o portátil em revisão durante dois dias completos deu-me uma
grande sensação de liberdade. Mas chegado a domingo à noite, depois de as crianças estarem
limpas, alimentadas e deitadas, preparava-me para escrever a crónica desta semana e, ao sentar-
me à secretária, tive um choque de realidade: percebi que não tinha forma de o fazer.
É claro que tinha (e tive!) e a resposta a esse dilema não tardou muito a aparecer à frente, mas
parecia uma solução tão desajustada da realidade que ainda agora causa estranheza à medida que
escrevo. Adivinharam: estou a escrever à mão. O que, por si, não é digno de menção aos
excelentíssimos leitores. Mas achei curioso reflectir na minha reacção, porque espelha de certeza
o comportamento de muito outros contemporâneos, quando se vêem privados do seu auxiliar de
escrita.
Teremos nós chegado ao cúmulo da incapacidade humana, quando nem escrever à mão já
conseguimos fazer? Ouvi o coleccionador brasileiro Pedro Corrêa do Lago, que tem provavelmente
a maior colecção de autógrafos (i.e., originais escritos pelo punho do próprio autor) do mundo,
contar que ao mostrar o seu espólio único a um americano, este – entre a maravilha e o embaraço
– confessou: “eu adorava ler o que está escrito nestes documentos, mas nunca me ensinaram a ler
letras manuscritas”. Imaginem do que se privava aquela pobre alma! Sem capacidade para ler uma
carta, uma dedicatória, um bilhete amoroso, nada!
E esse parece ser o caminho de todos nós, porque, salvando-se o ensino escolar obrigatório, até
universidade também já eliminou o manuscrito. A propósito disto, contava-me um amigo
professor de Direito que os exames na sua faculdade já são todos feitos por computador e, dando-
se a circunstância de uma falha informática impedir que pudessem ser usados os computadores
durante uma prova, os alunos foram convidados a escrever as respostas à mão numa folha de
ponto, o que gerou o pavor naqueles infodependentes que provavelmente já nem o nome
completo sabiam gatafunhar.
Estou a reler o “Notre-Dame de Paris” numa excelente nova tradução da Relógio d’Água e
encontro-me precisamente a meio de um diálogo que o arcediago Claude Frollo enceta com
Jacques Coictier, o médico do rei, e com o próprio rei de França Luís XI, que está incógnito sob o
título de abade de Saint-Martin des Tours: “O arcediago contemplou durante algum tempo, e em
silêncio, o gigantesco edifício. Depois suspirou, estendeu a mão direita para o livro impresso que
estava aberto em cima da mesa e a mão esquerda para Notre-Dame, lançou um olhar triste que foi
do livro à igreja e disse: – Infelizmente, isto vai acabar com aquilo!”.
Tal como Frollo pressentia que o pensamento humano, ao mudar de forma para a palavra
impressa, mudaria também o modo de se exprimir – porque as ideias de cada geração já não se
iriam escrever no mesmo suporte nem da mesma maneira –, também hoje essa profecia se
cumpre, e de maneira muito mais completa. Porque além da palavra impressa, cada pessoa
tornou-se na sua própria prensa, que grava de forma perene tudo o que pensa, por mais
insignificantes e erróneas que possam ser as considerações que tenha sobre o mundo.
Há de facto na palavra manuscrita uma “gravitas” que desaparece com a máquina. Porque na
folha de papel tudo é pensado antes de ser redigido, ao passo que no teclado parece que tudo é
redigido antes de ser pensado. E nestes desvaneios sobre o “prelo luminoso de Gutenberg”, como
lhe chama Victor Hugo, acabo por não escrever nada daquilo que tinha inicialmente pensado. Mas
devia ser tão interessante que até já me esqueci do que era.

Artigo de Opinião publicado originalmente na edição impressa do jornal Linhas de Elvas nº 3708 de 16 de Fevereiro de 2023

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